Sonhar é bom, viver é muito melhor

Sonhar é bom, viver é muito melhor

É o primeiro livro de contos longos do autor. Antes de escrevê-lo, Ronaldo Duran se dedicava a romances.


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Contos

O homem é bicho inconformado com a regra do jogo que a vida impõe. Já vimos formiga alcançar a lua? Comando de um formigueiro, apoiando-se numa suposta legitimidade, ditar ordens no formigueiro vizinho? Cavalo, boi ou vaca se meter à besta em bulir com a camada de ozônio?

O bicho humano mexe e remexe com quase tudo. Gordo, sonha emagrecer. Magro, espera tomar corpo. Branco, se irrita, e quer amorenar. Negro, pinta-se de branco. Calvo, não vê a hora do implante... Os genótipos perdem para as tintas artificiais que colorem pele e cabelo nos dias atuais.
Assim como nas demais espécies da natureza, na humanidade há os supertranquilos contrastando com os ativos em demasia. Extremos humanos. Quanto aos primeiros, na ótica dum observador pouco atento aos pequenos detalhes, juraria tratar-se de pessoas conformadas.

Conformado? O ser humano? Nada mais errado. A menos que esteja morta, não há pessoa totalmente conformada.

Destino, Deus, espíritos do além e demais forças ocultas do universo largaram mão de tentar compreender esta espécie esquisita que rasteja sobre a Terra. Viram que é trabalho perdido.
Passear na filosofia sobre o que é o homem nunca surte o mesmo efeito que apresentar o simples dia a dia duma pessoa.

Já que se trata de inconformados, veremos um.

Robson de Braga Araújo quer ser valorizado como escritor. Até aí, nada anormal. Cada um tem seus sonhos.

Aqui o sonhador beira o poço da obsessão.

Robson leva sua meta até o limite do delírio. Ainda que seja um delírio letrado, acadêmico e crítico. O delírio é alcançar a fama a qualquer custo. O ruim é que o reconhecimento foge dele como alguns parlamentares se esquivam da CPI (seja qual CPI for, desde que ponha em dúvida seus atos e patrimônio).

Manhã de quarta-feira, mês de julho de 1996. A cidade de Taubaté, interior do Estado de São Paulo, despertava da mesma maneira que o fizera no dia anterior, a despeito do que possam falar os amantes da Física.

Estamos na periferia, porque Taubaté também tem sua periferia. A casa é aquela desprezada pelas pessoas esnobes e sonhada por milhares de miseráveis que encaram um banco frio duma praça, um canto duma calçada encostado nalgum estabelecimento comercial; únicos pontos que costumam estar disponíveis numa metrópole, salvo se o indigente conseguir uma vaga nessa ou naquela favela.

Robson olha para o neurótico despertador, que berra sem cessar. Marca seis e meia. Reclamar do quê? Ora, ele que preparou o encrenca para tocar nesse horário. Tem mais é que agradecer. O que se quebrou na semana passada, ora, era um tal de perder hora.

_ Vamos, homem, vamos... A hora é esta.

Não é o despertador que dirige estas palavras. Sua consciência, em meio ao torpor, é que grita.
Bem que quis dar ouvidos ao chamado. O cansaço é que não permitiu. Dorme por mais uma hora.
De repente, apóia-se na cama. Espreguiça. Queria que o mundo acabasse, uma bomba caísse, ou coisa pior. Tudo, menos deixar as cobertas.

Toca com os pés o chão gelado. Procura os chinelos. Malditos. Nunca os acha onde os deixa na noite anterior. Só que não saberia dizer precisamente em que lugar os deixou. Apanha-os, um pé no sul, outro no norte. Nem que quisesse conseguiria atender a antiga solicitação da mãe, dona Eunestina.

_ Evite pisar no chão gelado. Faz um mal danado para a saúde.

Dona Eunestina cumpria seu papel de mãe zelosa. Temia o resfriado crônico do filho. Embora que esporádico, desde tenra idade Robson não tinha sossego. A luta já dura mais de três décadas.
Num passe de mágica, vestira a surrada calça jeans, a camisa sem passar. A refeição matinal vinha com o chocolate em pó misturado ao leite e uma banda de pão amanhecido, passada na manteiga. Café dava muito trabalho, até os solúveis. Bebia a rodo durante o expediente, então para que encanar?

Os dentes ficariam sem escovar. Lá no cartório emplacaria a higiene da boca. Em seu armário, luziam sabonetes, pasta e escova de dente.

O sol duma manhã de inverno, vez por outra, irrita os olhos dos que saboreiam as recomendadas oito horas de sono. Imagina que estrago faz com os que conservam o mau hábito de imitar morcegos e corujas, trocando o dia pela noite. Robson, dedicado amante das letras, encontra oportunidade para rabiscar seus poemas no silêncio e na hora vaga da madrugada.

Chegou ao cartório atrasado. O patrão, ressabiado, nem faz cara feia. Se adiantasse! O único consolo era descontar no fim do mês. E não estava disposto a abrir mão do recurso.

Quem gosta de perder? Nem o atrasado. Um dia a indignação explodiu. O atrasado, de holerite em punho, tomou coragem e foi reclamar.

_ Mas seu Antônio, tudo isso de desconto?

_ Que fazer? São os minutos atrasados.

_ Tudo isso? _ o empregado, com expressão sofrida no chupado rosto, monologa a pergunta, sem esperar uma resposta favorável. Sabia que estava errado.

_ Somei vinte minutos num dia, quinze noutro... Cheguei a esse valor _ disse o patrão com os olhos fixos no papel, no qual listava os mais de vinte dias que sofreram algum tipo de desconto.
_ O senhor sabe que moro longe...

O advogado Antônio Queiroz, proprietário do cartório, sorriu meio sem graça. Com mais anos de advocacia do que Antônio Magalhães de política, ele sabia reconhecer um bom caráter na pele de Robson. Funcionário aplicado. Não fazia corpo mole no serviço. Nem era de faltar.

Procurou contornar a atitude arbitrária.

_ Sei de tudo isso... e muito mais... O que não posso é abrir exceção para alguém. Se não cobro seus atrasos, é bem capaz que daqui a algum dia todos passem a chegar depois das dez...
Exagerava. Mas mesmo exagerando todo empregador julga ter razão. E quem é que vai destituí-lo dela?

Robson bate em retirada, volta para seu posto. Reconhecia a perda de tempo.

Após tirar a capa protetora da máquina profissional, correu a Henrique para receber a papelada acumulada. Datilografaria direto e reto, sem parar, até a hora do almoço. Se bem que ir ao banheiro, fumar um Hollywood, molhar a goela com um cafezinho, café que o Guilherme, vulgo Zé Beiçudo, trazia do bar & restaurante, eram de lei, ações constituintes do expediente.

O dia no cartório era de cão. E dos raivosos. O cristão tradicional ali enxergaria a imagem do inferno dantesco. Nem faltando figuras carimbadas como a do diabo. Este na pela do Dr. Antônio Queiroz.

Que mais pensar face àquela fisionomia extravagante? Bigode espesso, meio cinza pela idade, meio amarelo pelo hábito do charuto; calva pronunciada no topo da cabeça; raspa de cabelos brancos acima das orelhas; as bochechas que pareciam ferver, dado o vermelho constante na hora de maior movimento no cartório.

O diabo não reina solitário. A clientela doutro lado do balcão seria os anjos decaídos. Isto quando não ocorria de um ou outro mais atirado adentrar a área que deveria ser exclusiva aos funcionários, no intuito de tornar suas exclamações mais veementes, aterrorizadoras.

A lógica diária é a gritaria. Caras irritadas diante da espera. Taxas contestadas antes de quitadas. O doutor, algo sensível com as pessoas, passa por bruto quando o assunto é ganhar dinheiro ou evitar perdas. O número de funcionários, ah, insuficiente para a clientela. A sede de lucro faz com que feche os olhos à realidade.

Coisas de Brasiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiil.

Rotina dos documentos importantes. Firmas que se abrem. Firmas que se fecham. Pessoa física ou jurídica que protesta ou se vê protestada.

O Brasileiro amante do samba encararia o tumulto diferente do cristão tradicional. Veria nele o carnaval jurídico. Os mais variados blocos desfilando pela grande apoteose chamada cartório. Blocos dos golpistas, dos lesados, dos empreendedores, dos associativos...

Datilografar, manusear documentos ultra-ultraconfidenciais. Reconhecer assinaturas, rubricas. Autenticar cópias de RG. CIC. Tirar certidão de nascimento, de casamento, de óbito. Receber o tal CGC. Cópia do estatuto publicado no Diário Oficial, colorido pela lista dos diretores, associados. Registrar ATA de Assembleia ordinária, extraordinária, é sempre bom para evitar falatório.

Os ventiladores de teto que esquentam mais do que refrescam. O ar-condicionado que pifou uma semana depois de instalado, e até agora na assistência técnica. Ainda bem que o inverno ajuda um pouco.

Os calos nos dedos, coisa de praxe. Canetas babadas e mordidas nas tampas. Muitos preferem chupá-las que mascar ponta de cigarro.

Cinco e meia. Robson esgotado. Quem estaria ainda com alguma animação após toda essa tempestade? Ninguém, a não ser um malandro. O malandro que se poupa do esforço bruto, que consegue dirigir o ambiente de modo a não se perder no estresse doentio. Marcos é o malandro. Único que se mostra disposto a passar no Shopping Center, esperar a namorada que trabalha numa butique e encarar duas horas diante duma grande tela de cinema, com saco de pipoca na mão.

Os demais se arrastam para suas casas. Uma boa parte, depois de um banho e a refeição quentinha que aterrissa na mesa de jantar, recuperam o ânimo. Despertam. Dão a devida atenção à TV, ao rádio, durante o resto da noite, aguardando a hora de dormir.

O solitário não goza da mesma sorte. Vai lavar a louça. Pôr algumas coisas em ordem. Desde que a mulher pediu as contas, indo se enroscar nos braços de outro homem, na opinião dela mais pé-no-chão, a casa beira uma república de hippies. Robson só capricha na arrumação quando o filho e a menina vêm visitá-lo.

O pai deposita a pensão das crianças, a quantia que a lei exige, na conta da esposa. Não é pão-duro. Quando necessário, solta mais grana. A esposa e o atual marido, ambos bem empregados, não fariam questão. Mas já que o pai quer, melhor.

Aninha cansou da convivência. Robson teve uma vida familiar boa. Perdeu por intransigência. Retomou um hábito que nutriu na adolescência: o gosto pela poesia. Sem medir as consequências, quis se dedicar para valer.

Agarrou-se aos livros com sofreguidão nos fins de semana. Encolerizou a esposa. Sem passeio, sequer assistir ao Faustão, nem futebol, nem brigar, nem nada. Leitura, só. Insuficientes os fins de semana, contaminou as noites, as madrugadas. Ela, solitária. Ele, lendo e escrevendo. Foi a gota d’água. Não nascera para isso. Assim que ele completou um segundo volume de poesias, Aninha pulou fora.

Robson enviou os volumes para as editoras. Duas recusaram logo. Outra, quase seis meses para dar a resposta negativa. As editoras são gentis. Quando recusam o material, alegam: nossa programação de lançamento já está preenchida pelos próximos meses. Mesmo sem interesse na publicação de seu original, agradecemos a preferência. A ausência de palavras explícitas que desqualificam os poemas incentiva o ego do escritor a persistir na labuta, nutrindo a esperança de que um dia a sorte apareça.

“A arte nasce destituída do lucro. Se um dia enriquecer, legal”, é a opinião de Robson. Conservando esta convicção nosso Dom Quixote das letras desvalorizadas dedica-se de corpo e alma. Um martírio que, cá entre nós, fornece algum prazer ao pobre infeliz.

Que importa mulher, tranquilidade? No cérebro do inconformado há uma substância esquisita. Néctar da confiança, poder da determinação ou vírus da ilusão? Pouco interessa. O que vale é que disputa lugar com o sangue, irrigando sonhos e atitudes.
Feliz de quem nunca teve uma pontinha de ciúme dos famosos, dos que têm a cara exposta na tevê, vestindo uma camisa do entretenimento.

As camisetas são várias. Futebol, novela, música, as mais frequentes. As miúdas vêm na pele de jornalista, político, economista, sindicalista, até ginecologista. A de escritor, ainda que tímida, detém alguma presença.

Quem tem o rosto conhecido por milhões de brasileiros carrega consigo um algo especial. Assim supõe o público, ainda que a ideia nunca tenha passado pela cabeça do famoso.

Que menina, boquiaberta pelo rebolado duma dançarina de sucesso, não imaginou que se tivesse um quadril mais sensual poderia atrair igual destaque?

A febre de imitar ídolos é antiga.

Tempos atrás se imitava os chefes da tribo, os reis e rainhas. Nos dias de hoje, os meios de comunicação de massa fornecem a nova safra de ídolos.

Quem já não brigou, bateu, apanhou, ou sofreu, ou vibrou pelo time do coração? Quem nunca chorou e sentiu energia sem limite ao ouvir um cantor? Ou quis estar na pele de um galã ou atriz? Ou se enamorou dum artista?

Tarefa árdua procurar explicar o fenômeno da idolatria. Para uns, o motivo é a aparente vida fácil que o ídolo leva. Para outros, são as atitudes da pessoa famosa que dão o tom da admiração.
É justamente o segundo tipo que o conto retrata.

Lembra-se do sucesso de Madonna na década de 80? Um marco. Seu estilo influenciou o ritmo de muitos dançarinos que hoje são profissionais. Dança de alto e baixo impactos. O ritmo da rainha pop americana mexeu com as academias de dança brasileiras.

Em 1987, muitas jovens, ao ouvirem a loira cantar, afastavam as mesas e cadeiras, desobstruindo o espaço, para dançar. Que rádio em solo nacional evitava o som contagiante de Madonna? Até canais de tevê exibiam clipe.

Tânia Paliza Tallini, com 16 anos, era uma das dançarinas anônimas.

Catarinense, mora na cidade onde nasceu: Lages. Só mudou de região, indo para o novo centro. Vive com os pais num apartamento, faz uns dez anos. A infância passou na casa dos avós, na parte mais antiga da cidade. Basta ver a arquitetura predominante nas residências vizinhas.

Como a maioria, a casa possuía um quintal, suficiente para conservar um pé de laranja e um abacateiro, entre árvores não frutíferas, e uma horta, com verduras e legumes que saem dali direto para a panela. A criançada usava o espaço para brincar, correr à vontade. Tudo na maior felicidade. Nem faltavam os xingos quando a avó notava danos na plantação.

A Tânia preferia passar a maior parte do tempo na casa dos avós. Por que escolher ali em vez do bem localizado e confortável apartamento? Simples: a falta de espaço no segundo.

A segunda das filhas da sra. Paliza, a jovem Tallini sentia-se presa no apartamento para realizar o que mais gostava: dançar ao som de Madonna. Na casa de sua avó, pelo menos tinha um quarto ocioso, do tio que havia ido para o interior de São Paulo tentar a sorte como pedreiro há mais de uma década.

A avó vivia preocupada em dar conta das costuras. Apesar da aposentadoria, da ajuda dos filhos e do salário do marido, não largava mão da atividade. Uma maneira de se sentir útil. O preparo do almoço especial de domingo também dava grande satisfação.

Dona Evangelista, a avó, sabia como ninguém o que levava a neta a preferir o humilde casebre. Anos atrás, a garota já intrigava com a mania da dança. Dona Evangelista, àquela época, se emocionou, sabia que sua própria avó era uma dançarina de primeira. Em Sevilha, quem mais que os Palizas para bailar por toda la noche? Para ela, a neta herdou da tataravó o bailado irresistível, encantador. Pena que no Brasil as mulheres da família perderam o rebolado diante da rotina sofrida de imigrantes. As plantações e colheitas de milho e batata sequer davam tempo para tirar a saudosa sesta após o almoço.

A avó evitava perturbar. A neta se viu incentivada a ir lá durante uns bons anos. Pena que tudo tenha um limite. Bastou beirar os dezessete anos para a paz cessar. Era hora de definir uma profissão promissora ou um casamento vantajoso, ambos se possíveis.

Cedendo à natural preocupação materna quanto ao futuro dos filhos, a Sra. Vânia queria uma definição de Tânia. A mais velha cursava química em Joinville. A caçula ganhou uma bolsa para o colegial nos Estados Unidos, a partir do ano que vem. A patroa de dona Paliza, esposa de rico fazendeiro, deu uma força. O marido mantinha contatos importantes no Texas. Helena teve seus méritos. Atenciosa, aprendeu a bater à máquina, atender ao telefone e anotar os recados. Era a secretária mirim do casal.

Tânia é que encalhou. Manifestou uma preguiça incomum pelos estudos, se bem que nunca repetiu de série. Temendo os pais, achou melhor nunca perder um ano letivo. As notas eram razoáveis. Sabia fingir bem. Por dentro, odiava biologia, português e tudo o mais que exigisse uma concentração que ela não estava afim de dar.

Dançar, dançar e dançar era o que gostava.

Certos hábitos regionais, mesmo com o efeito da globalização, da tirania da tevê, conservam-se. Os jovens do interior de Santa Catarina raro têm acesso a toda a liberalidade dos que habitam os grandes centros.

A paixão pela dança teria apenas vazão em casa. Nos bailes e festas, Tânia se sentia meio sem graça. Odiava se expor. Sentimento esquisito, quanto mais se tratando de alguém que curte dança.
O ódio em se expor tinha lá suas razões. À medida que tentou se soltar, dançar livremente algumas vezes, as cabeças-de-bagre a fustigaram com seus preconceitos. Preferiu, pois, recuar. Dançaria o comum diante dos comuns. E o especial guardaria para quando estivesse solitária.
Preconceitos a acompanharam desde tenra idade até meados dos trezes anos, quando ainda ousava dançar na frente dos pais, dos parentes.

_ E essa menina! Nunca para de saltitar que nem cabrito _ uma tia que falava.

_ Frango destroncado _ brincava um primo mais velho.

_ Mas para mim _ continuava a primeira _ acho que deve ficar de olho aberto... Essas coisas só servem para perder nossas crianças. Tem que ficar de olhos abertos... _ ela repetiu, acrescentando reticências alarmistas.

Os pais silenciaram.

_ Já pensou se um dia decide ganhar a vida rebolando? _ alfinetou.

_ Imagina! Antes morta... filha minha não entra nestas coisas _ berra o pai ao ouvir o disparate.
_ O mundo de hoje está perdido, meu compadre, e essas manias que vêm da cidade grande já puseram a perder muita gente. Depois que viram o juízo, não há santo que dê remédio.

_ Cruz e credo _ uma velhinha fez o sinal da cruz.

_ Culpa dos pais... é dar uma boa coça e tudo se endireita _ o pai ruminou.

Se na aparência os pais pouca atenção deram aos comentários, na prática mudariam em muito a atitude para com Tânia. Vendo a menina dançar, pediam que fizesse alguma coisa: lavar uma louça, costurar, acompanhar a mãe ao açougue. E se ela não tivesse o que fazer, inventavam. Queriam arrancá-la da ociosidade. As músicas agitadas sumiram. O AM voltou a predominar, sempre que os pais estavam em casa.

As filhas eram dependentes economicamente. O querer paterno tinha pleno poder de impedir que as meninas adquirissem os discos com músicas avançadinhas.

Tânia se viu acuada. Temente a Deus e superobediente aos pais, tudo sacrificaria para não os frustrar. Passaria a procurar a casa da avó.

Três meses mais à frente, encontrou um garoto simpático, o Joe Rinkis, vinte e um anos. As palavras gentis e o olhar acolhedor, únicos traços que o diferenciavam. Era caminhoneiro. Junto ao pai, fazia entregas em cidades de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Joe e o Sr. Rinkis estreitaram relações com o pai de Tânia. A simpatia foi mútua.

Após um ano de namoro, Tânia, antipática aos estudos, tinha momentos de desespero. Sonhou fugir de casa, ir para Joinville, Florianópolis ou Curitiba.

Procuraria um lugar onde estudasse, aperfeiçoasse e ganhasse a vida com a dança. Embora gostasse de Joe, não hesitaria em deixá-lo se fosse necessário, se o rapaz se mostrasse relutante em acompanhá-la.

A obediência aos pais a impedia de uma atitude tão drástica.

A avó veio a falecer de doença. O avô, meses depois, seguiria a esposa, motivado pela solidão.

_ Viveram mais de cinquenta anos juntos. O homem era uma criança... Partindo a companheira, morreria a vontade de viver.

Frases assim justificavam a ida repentina do avô.

Passada a dor pela perda dos avós, Tânia viu-se privada de espaço. A convivência no apartamento cada dia mais insuportável. Os pais, tradicionais, estavam longe do modelo dos que querem os filhos barbados e as filhas mulheres-feita grudadas à barra da sua calça.

O casamento com Joe acenava como uma solução imediata. O pai do rapaz arrumaria uma casa, simples, mas acolhedora.

Meses após o casório, as contrações no ventre anunciam um rebento.

Tânia se realizou como mãe. Gostava sinceramente do esposo. Frustrava-se pela ausência duma carreira, quando se comparava à irmã mais velha, única formada na família, ou à caçula, há dois anos nos Estados Unidos.

O marido, já de posse do próprio caminhão, em média levava uma ou duas semanas na estrada, sem dar as caras em casa.

A médica, após o parto, incentivou Tânia a praticar exercícios físicos.

_ Ajuda e muito.

Mas que exercício físico? Gostava só de dançar.

Um pouco pela ausência do marido, outro tanto pela tensão que é cuidar de filho pequeno, despertou para o antigo hábito de ouvir música na sala.
Joe adquiriu o três em um.

Pela primeira vez um disco da Madonna todinho seu. Punha para tocar e ouvia durante horas. Ouvia e dançava. E como dançava. Aí sim, se excitava para valer. Difícil os vizinhos não notarem a beleza que o corpo da dançarina dona-de-casa conservava. Pouco tempo depois, era mãe pela segunda vez.

Muitas vezes, surpreendia-se quem passava diante do portão de grades pintadas de vermelho. Olhos atentos se arregalavam face à empolgante figura, de menos de 22 anos, dançando com as fraldas, no momento que as pendurava no varal.

Uns a achavam louca. Outros, que a felicidade ali descobriu uma agradável morada.
Um helicóptero pousou sabe lá como na congestionada marginal Pinheiros. Poucas coisas existem que se comparem à agilidade de uma equipe médica numa operação de resgate, quanto mais se o acidentado tiver a boa sorte de possuir um plano de saúde dos bons. Tamanha presteza é de cair o queixo.

Tudo bem que o serviço privilegiado é, devido ao preço, monopólio de uns poucos sortudos. A maioria do povo brasileiro se vê sujeita à duvidosa boa vontade do atendimento público, que, entre outras coisas, prima pela demora e indiferença com o sofrimento alheio. Umas vezes é culpa do governo, que negligencia leito e melhoria de salários; noutras, é safadeza de funcionários pouco escrupulosos. Em qualquer dos casos, é o povo que leva a pior.

Pouco importa saber a opinião dos que são postos à margem. A natureza nunca foi justa para todos, diriam certos capitalistas.

De volta à cena, o trânsito está parado. Buzinaço, gritaria e lentidão fazem parte do cotidiano dos paulistanos. Uma rotina intoleravelmente normal. Com ou sem acidentes, o caos é uma constância na hora de ir para o serviço e na de voltar para casa.

_ Senhora Ginilda... O trânsito está como naqueles dias... Pelo jeito vou despachar daqui.

A fala vem de um homem de terno e gravata. Com as nádegas sobre o confortável banco de passageiros e a fisionomia tensa, ele enxuga com lenço de pano o suor que escorre pelo rosto, pelo pescoço. A outra mão segura o celular ao pé do ouvido. O motorista particular, ainda que na direção, está mais tranquilo que o patrão. Ao celular, o empresário passa as instruções para a secretária executiva. Pede que dê encaminhamento aos papéis mais urgentes.

A massa heterogênea de trabalhadores lotando os ônibus. Profissionais liberais, professores, gerentes dirigindo os mais variados automóveis. Empresários menos tensos, guarnecidos de motoristas, cochilando no banco de passageiro.

Num engarrafamento de manhãzinha há duas escolhas: cochilar ou se irritar.
Nove horas da manhã. O sol concede uma folga. O interior dos veículos está numa temperatura amena. O que esquenta é a demora.

Finalmente a maca na qual segue o acidentado adentra o helicóptero. Minutos depois, todos assistem ao grande mosquito mecânico levantar voo.

Deslizando pelas nuvens, dentro da nave, a equipe médica luta para reanimar o paciente mergulhado num desmaio profundo.

Antes de ter o paletó arrancado e a camisa desabotoada para receber a massagem acima do coração, o paciente estava bem vestido. Barba feita minutos atrás. Da boca exalava um hálito de creme dental. O profissional que emplacou a respiração boca-a-boca, confirmou o gosto do creme.

Patrício Pimenta Martikies, 46 anos, 1, 81 m, cabelos castanhos lisos e curtos, reside num condomínio espaçoso. Recém-casado, está preste a ser pai pela primeira vez. Os ricos dos anos noventa têm suas excentricidades. A união matrimonial vem cada vez mais tarde. A mulher, dez anos mais nova, está no segundo casamento. Carrega consigo um filho do primeiro marido, morto por um câncer.

O grupo de resgate da Amil pousou há meia hora. O paciente passou às mãos da equipe de plantão na Clínica Santa Genoveva. O endereço será negado. Já pensou se invejosos calham de aparecer por lá e tirar o sossego do pessoal? O escritor não deseja incomodar quem quer que seja.
A esposa, quando soube da notícia em casa, quase teve um desmaio. Nem tanto pelo amor que devotava a Patrício. Temeu perder dois maridos em menos de cinco anos.

De um pulo, apanhou as chaves do carro. Encarregou a babá que ficasse de olho no Alfredinho.
_ Matilde! A quem me ligar, diga que fui ao hospital ver meu marido...

Atravessar a cidade é tarefa das mais horríveis, cansativas. Mas o motivo força.

Casal unido. Após desilusões com ex-parceiros, experiências malsucedidas, acharam, um ao lado do outro, não a perfeição, mas a verdadeira razão de viver a dois.

O médico avistou a Sra. Martikies. Conhecia-a porque o marido já havia passado ali pelo mesmo motivo: complicações cardíacas. Ficou um dia internado. Hoje, a situação estava mais complicada. Permanecia em coma, decorridas duas horas do socorro.

_ Sra. Martikies, por aqui, por favor _ o Dr. Marcelo Santana a guiou, quando vagava confusa no corredor. Apontou a sala em que estava o paciente.

_ Muito obrigada doutor...

Agradecida pela atenção, conservava-se cabisbaixa. Sentia-se um pouco culpada porque o teimoso marido não seguiu à risca os conselhos do cardiologista.

Adentraram a sala. Os aparelhos computadorizados. Tinha-se a impressão de se estar em qualquer lugar, menos num leito de hospital.

Nada adiantou Rita, a esposa, acariciar o braço do empresário. Nem mesmo a água dos seus olhos pudera despertá-lo.

Voltaria para casa, deixando o marido internado.

O empresário permaneceria na clínica duas semanas. Dez dias em coma. Os dias restantes, recuperando-se.

No dia da alta, o médico, velho amigo dos pais de Patrício, rompeu o silêncio. Evitando repetir tudo aquilo que havia dito da última vez, ofereceu um livro do Dr. Ricardo de José da Silva. Era de autoajuda.

_ Gostaria de pedir um favor?

_ Hum...

_ Leia.

Estendeu o livro. Patrício o apanhou.

Diante da capa sugestiva, disparou.

_ Autoajuda, doutor? O senhor sabe que, por mais que eu tente, isto não funciona comigo.

_ Então continue tentando... A vida é um eterno tentar... Se morrer da próxima ao menos terá a certeza de que era inevitável, pois tentou...

O paciente ficou em silêncio. O cardiologista nunca havia sito tão direto.

Despediram-se, aparentando mais tranquilidade. Era domingo de manhã. Na quarta-feira à tarde, o médico passaria na casa de Patrício para fazer o check-up.

Chegou em casa. O Alfredinho pulou em cima dele. Chorava. Aos seis anos, considerava Patrício mais que um mero padrasto. Perdeu o pai antes de completar um aninho. Há três anos vive sob a proteção do novo chefe da casa.

_ Pai, promete que o senhor nunca mais vai viajar...

_ Prometo.

A esposa estava confusa e se segurava, evitando abrir as comportas. A alma desejava despejar as lágrimas.

“Nada de emoções fortes”, comentou a Sra. Martikies. Havia gravado a recomendação médica. De pronto, encaminhou o filho para a babá. Sugeriu ao esposo um banho animador.

_ Alguém ligou para mim?

_ Não...

_ Como não?

_ Souberam do que aconteceu... Acharam melhor dar tempo para sua recuperação.

O marido sorriu. Acariciou a barriga de três meses e meio, aceitando o ombro da mulher para ajudá-lo a galgar os degraus. Subiram a grande escadaria rumo ao quarto. Por que o sorriso? Ela sumiu com seus celulares.

Sabia que a esposa tinha mentido.

Tal atenção no mundo dos negócios? Ora, esta era muito boa. Todos pensam unicamente em seu próprio umbigo. Querem audiência. Querem reunião. Aprovar projetos. Ganhar patrocínio. Concluir obras. Receber grana, encher o bolso. Quem se preocupa com a saúde de quem quer que seja?

Morrendo o sujeito, é menos um na luta empresarial. Rápido outro ocupará o lugar. Se a empresa acabar, todos arrumam as malas e vão bater à porta de outra, ou montar o próprio negócio.

Patrício se espantaria ao folhear as páginas do livro que o cardiologista indicou. Veria considerações similares às suas recheando a narrativa. Esse o principal motivo que o tornaria fã assumido do polêmico Ricardo de José da Silva.

Para o leitor que desconhece a polêmica, saiba que o psicólogo afirma que boa parte de suas máximas, aplaudidas e postas em prática pelos seus pacientes, viria de três entidades sobrenaturais. O terapeuta teve a audácia de dizer que Id, Ego e Superego em carne e osso o ajudam a solucionar casos complicados.

_ Já não bastavam os picaretas da vida? _ foi a primeira frase que um conceituado psicanalista esbravejou. Estavam no congresso de Psicoterapia onde Ricardo expôs sua tese.

A despeito dos críticos, é um dos mais vendidos.

Lido o livro, Patrício deu um tempo. Um súbito silêncio apossou-se do irrequieto empresário.
Não foi bem um ruminar da teoria lida. Nada. Apenas deixar de pensar em qualquer outra coisa, centrando-se em si mesmo, em sua vida, suas experiências, o que perdera e o que ganhara no correr dos anos.

No dia do checape, o médico o encontrou com uma fisionomia melhor. Anos de experiência o impediram de perguntar se o paciente havia gostado do livro. Recomendou ar puro. Sugeriu mais alguns dias de repouso.

_ Infelizmente, doutor, eu tenho assuntos importantes a tratar na empresa. Volto amanhã ao batente.

Magoado e desiludido, o médico meneou a cabeça.

_ Bem, cada um sabe seu limite. Qualquer coisa é só me ligar.

Através da frase atravessada, a esposa do empresário visualizou a mágoa que os médicos não conseguem esconder vendo seus conselhos contrariados.

O Sr. Martikies convocou reunião extraordinária. O pessoal ficou com a pulga atrás da orelha. Sempre que havia uma, coisa boa não vinha pela frente. Cortes aqui, ali. Possíveis demissões inesperadas. As demissões eram raras, mas nunca se sabe.

A pauta apresentou-se suave.

Nada além de descentralizar o poder. O presidente duma grande empresa de tintas látex do país apenas impôs descentralização.

_ Nos últimos anos nem pude me coçar. E pra quê? Sei que em parte por minha causa. Afinal, vocês são excelentes funcionários, bons profissionais. Qualquer pessoa mais ajuizada veria que eu me mantive muito intransigente... Mesmo não precisando, queria porque queria dominar tudo, cuidar de tudo, responder por tudo.

O pessoal ouvia atento, sem saber aonde aquilo iria dar. Ninguém ali acreditava que a tal descentralização funcionasse no caso de um pé-de-boi como o patrão.

_ De agora em diante _ prosseguiu Patrício _, fiscalizarei somente os resultados. A equipe terá mais autonomia. Se os resultados forem iguais ou superior aos atuais, não haverá motivo para demissões. Acredito no potencial de vocês.

Encerrou a reunião. Estipulou os horários em que daria plantão. Estava disposto a romper o costume de permanecer enfurnado no escritório doze horas. Impediu que telefonassem para ele. O celular seria desligado.

Dali para frente, que cada departamento se virasse com suas buchas. Eram pagos, e bem pagos, para darem o melhor de si. Havendo questões pendentes, impossíveis de solução isolada, que convocassem reunião extraordinária.

Caberia ao presidente da empresa fiscalizar os cofres, entrada e saída de capital, investimento, e retorno. Só que a produção fica por conta de quem produz.

Saiu da empresa.

Alívio.

Sentado num banco de praça, o empresário solitário observa as pessoas passarem apressadas. As fisionomias contraídas, oprimidas, opacas. Caso se depare com figuras tão tediosas qual extraterrestre diria que o ser humano sabe apreciar a vida?

Resolveu pegar o filho no colégio (considerava-o como um filho). Levá-lo a um parque, a uma pracinha arborizada. Imitaria o que o avô costumava fazer com ele. Até ali só havia seguido o exemplo do pai, que nunca tinha tempo para nada, a não ser para os negóóóóóóóóócios.

A quem ou ao que deveria agradecer a maravilhosa revolução que operara nele? Ao livro do doído Dr. Ricardo? Ao ataque cardíaco? Ao insistente médico da família? Ao destino? Nada. Deveria tudo a si mesmo. Conselho algum é bom ou faz efeito se não o seguimos.

_ Papai, que legal, que legal.

O pirralho curtia o balanço, o escorregador. O pai revivia momentos saudosos da infância ao lado do avô, que era bom contador de histórias e ruim de bola.