Renato poderia estar bem arranjado no jornalismo joseense, se não padecesse do vírus da iniciativa.
Na qualidade de um dos alunos mais dinâmicos do jornalismo diurno da Uep, apesar das notas nos boletins deixarem a desejar, pairava na opinião geral que o rapaz teria destaque em qualquer carreira que abraçasse.
Na mente de seus mestres persistia a ideia de que teria futuro brilhante. Os mestres não estavam sendo falsos ou demasiados otimistas.
Quem visse o vulcão que não cessava de jorrar ideias, de se meter em atividades paralelas e lutar em prol de interesses que muitas vezes fugiam ao culto do egoísmo, do exibicionismo, deduziria que ele alcançaria carreira promissora, confortável posto de trabalho na imprensa de primeira linha.
Quem vê cara não vê coração, lá vai o ditado.
De fato, ele possuía muitas habilidades que o destacava.
O problema foi sonhar mais com situações grandiosas e se dedicar menos em procurar colocação que pudesse garantir mercado de trabalho ao colocar grau.
Na época de movimento estudantil, não correu atrás de atividades que trouxessem benefícios imediatos. Por exemplo, investir em lobby com pessoas importantes, como diretores, para que conseguisse assegurar cargo logo que pegasse o canudo.
Com sua influência política, não usou o DCE como passaporte para entrar em partido oportunista, e ganhar poder de barganha lá dentro, de maneira que consolidasse fortes laços. Se tivesse feito, bem provável que fisgasse vaga para deputado ou cargo de assessor sabe lá de quem.
Sua deficiência vendava os olhos, atava as mãos, e o rapaz trabalhava em prol de interesses coletivos.
Tinha inabilidade de visualizar o lucro rápido, que servisse a seus interesses.
Antes, preferia investir em atividades coletivas, buscar melhoras para mais gente.
Nada é por acaso.
Atitudes são resultados de uma visão de vida, de traços de personalidade.
Se aos olhos de muitas pessoas são ações tolas, na opinião de Renato era o que deveria ser feito.
Gostava de suas ações, sentindo prazer por elas e desesperando-se caso fosse privado de agir como queria.
Colaborador em boa parte das revistas que a cada ano pipocava no campus, começou a ser conhecido da comunidade acadêmica local.
Seus artigos eram tão precisos, fulminantes, duma estética linguística impecável e munida de poder de persuasão que chegava a causar inveja a muitos caciques dentro do campus, fossem eles professores ou meros funcionários mais politizados.
A fama veio rápida.
Logo passou a ter influência como ‘meio’ líder.
O destino deu passo à frente, e veio a ser líder completo, com cargo, quando sugeriram que ele passasse a tomar conta da coordenadoria de relações públicas do C. A de Jornalismo.
Na prática, era quem ia lobiar com os chefes de departamento, diretores da faculdade, em prol de benefícios para a entidade.
Primeiro, achou prazeroso. Segundo, realizou um bom serviço à frente do centro acadêmico, no sentido de conquistar a estima de estudantes chaves.
Seu desempenho foi suficiente para obter a posição de coordenador do DCE – Diretório Central dos Estudantes –, órgão estudantil representante de todos os C.As e D.As que compõem os 22 campi da UEP, abrangendo vinte e uma cidades do interior paulista mais a capital.
Ainda na época como dirigente do C.A, era temido, ao lado de mais quatro alunos “problemas”.
O Diretor da Faculdade de Publicidade e Jornalismo, o reitor e mais meia dúzia de chefes de departamentos se sentiam incomodados com sua presença tanto quanto desagradaria uma pedra no sapato.
Que mania importuna de questionar as irregularidades no campus. Que petulância em cobrar as velhas promessas de campanha que reitores e diretores, logo que chegavam ao cargo que pleitearam, por um passe de mágica, esqueciam que fizeram. Quem ele pensava que era para infernizar os pró-reitores, diretores técnicos?
Odiado até nos sonhos pela dona da cantina porque de vez em quando se via obrigada a negociar preços mais “acessíveis” para o self-service, melhorar a boia do bandejão para beneficiar os alunos mais carentes.
Renato percebeu que a fala de que no ensino público superior brasileiro só estuda filho de marajá era balela, que era fácil encontrar bem mais do que meia dúzia de teimosos universitários paupérrimos que levam os estudos com grandes sacrifícios.
Notou o profundo desgosto da proprietária ao ouvir frases da boca de alunos como: “Puxa, se o restaurante fosse subsidiado” ou, o que é pior, “isto aqui é um roubo.”
Renato era mal visto – ou tratado com reserva – pelos donos da copiadora (na linguagem estudantil, Xerox) quando na defesa de reivindicações dos universitários que queriam mais agilidade na fila, bom atendimento e redução do preço da cópia.
Dado o prestígio oratório e de excelente articulista, era comum que tanto as entidades locais como as de quatro ou cinco campi, pertencentes a UEP, tratassem de agradar o estudante, para conservá-lo a seu lado.
Os líderes estudantis do PCR (Partido Comunista Radical), tendência partidária de esquerda que reina em alguns campi da UEP, destaque no maior deles, o de Bauru, e que fazem oposição ferrenha ao DCE, mesmo eles, roxos rivais, mantinham um não sei quê de respeito pela pessoa de Renato, tipo de respeito que é de praxe o bom político nutrir em relação a uma pessoa carismática.
No caso dos rivais do campus da capital do Vale, qualquer manifestação de solidariedade deles ao Renato vinha da certeza de que contar com seu “voto”, seu a apoio, significava 90% de êxito na aprovação de toda proposta que dependesse da decisão das entidades locais.
Por ser Renato desses jovens que se preocupam mais com a promoção de um ideal do que o próprio engajamento profissional é mais fácil sentir as ferroadas da miséria na carne.
Neste momento, faltando uma semana para colar grau, possui incerteza de oportunidade de emprego.
Em vez disso, o que consome sua dedicação, seu tempo, que suga as forças, é a necessidade de lançar no mercado revista que há mais de quatro meses vem idealizando.
Renato Sebastião de Jesus tem a raiz familiar num grupo de quatro pessoas, pai, mãe e dois irmãos. Residem na cidade de Guarulhos.
Antes de realizar a façanha de adentrar na UEP, trabalhava numa lanchonete do Aeroporto de Guarulhos, como atendente. Como boa parte dos jovens metidos em movimentos estudantis, a origem humilde da família contrasta em muito com o espírito ora empreendedor ora político.
A insuficiente instrução da família pouco serve para justificar a falta de rumo profissional desse rapaz de 27 anos.
O que pesou foi a figura do pai.
O Sr. Robson de Jesus, homem de 51 anos, teve papel secundário na educação dos filhos.
Renato o considerava acomodado, destituído de iniciativa.
Quando obteve dispensa do regimento de cavalaria, o pai agarrou-se à profissão de segurança, dando expedientes em carros fortes, agências bancárias, repartições públicas e ali permanece até os dias de hoje. Bem humorado, zeloso pela mulher e filhos, seria o pai perfeito, se a ambição de Renato fosse menos exigente.
Queria que o pai fosse mais decidido, buscasse melhores condições para a família.
Na fase de rebeldia, pouco valor dava ao fato de o pai evitar que a família passe privação. As qualidades de levar a sério o trabalho, evitar faltar e jamais ser despedido por justa do serviço significava para o filho.
Para jovens assim, tivessem tidos pais mergulhados em vícios de jogo, bebida ou mulherengo saberia dar valor ao senhor Robson.
Na opinião do pai, o conforto, ainda que modesto, estava ótimo.
Ele agradecia a boa sorte de ter saído do meio que vivera.
Desde criança, sentia-se incomodado com a extrema pobreza nos morros, de terrenos não asfaltados, de casebres, de barracos, de crianças de pés descalços no chão fétido, à beira de valetas, com esgoto a céu aberto, de marginais sem camisa e trajando bermudas coloridas e encardidas.
Embora desde rapazinho fosse asseado, prezasse pela limpeza, admite que graças à dona Mariana Sebastião da Silva teve a melhora no seu padrão de vida, ao desenvolver a certeza de que podia, através do trabalho, adquirir ambiente doméstico mais salubre e prazeroso.
Graças à dona Mariana é que também os filhos estudaram.
Da mãe, Renato herdou a cisma de querer melhorar de vida, o ar de pena diante dos considerados acomodados por ela. É triste – ela ia ensinando os filhos – ver a pessoa gastar tempo em procurar culpado por seus fracassos.
O tempo que perde daria para superar os obstáculos pelo trabalho ou estudo, para alcançar os seus desejos. Em vez disso, lamentosos, ficam na miséria, colocando ora a culpa em Deus ora no patrão.
Dona Mariana se irritava diante de pessoas que não reconheciam as próprias falhas e tentava promover esta consciência na cabeça dos filhos e marido. “A preguiça é primeira culpada pelo fracasso. Acomodar-se e culpar é o primeiro recurso que quem ganhar fácil acaba usando para justificar ter pouca iniciativa.”
Ensinava o filho o valor de ser responsável por seus atos em vez de culpar os outros por sua frustração.
A pouca instrução escolar e a ocupação de empregada doméstica e cozinheira de restaurante-lanchonete não reduzia a determinação de ver os filhos alcançarem futuro melhor.
Fez de tudo para garantir que Renato concluísse o Ensino Médio. Dali para frente não teria condições de arcar com os estudos do filho, mas incentivava a persistir na trilha da qualificação profissional.
Encerado o colegial, o jovem teve que decidir sozinho seu caminho, e nele se embrenhar, sem contar com ajuda financeira de quem quer que fosse. Durante os quatro anos de curso, foi um desses raros estudantes universitários que dependem dos próprios esforços, do serviço, para se alimentar, vestir e continuar estudando.
Se Renato puxou a mãe, João seguiu a trilha do pai.
O irmão terminou o colegial e findou os estudos de uma vez por todas. Considerava chato ter que estudar. Queria conseguir emprego como seus amigos do bairro.
Consumia boa parte do tempo dormindo, estendido na cama ou sentado junto ao portão ouvindo rádio, quando desempregado. Quando o empregado e calhasse de ter funções chatas, seguia reclamando da obrigação de trabalhar.
O irmão sonhava em ganhar na loteria ou qualquer prêmio que desse a chance de não ter que levantar cedo, ao garantir renda suficiente para casa e comida até o último de seus dias.
Em Renato, ao contrário, há indescritível e pulsante força que o arrasta à ambição.
É obsessão de querer ser algo além do que a família pôde.
Quer mergulhar numa atividade que traga como produto, como lucro, não apenas cifras, dinheiro, mas reconhecimento, valorização. Quer ter nome famoso, respeitável. Daqueles que se comenta, que tece inúmeros tititis elogiosos sem nunca ter tido contato.
Em parte este sonho de ingênua grandeza que habita nele muito se deve ao período em que trabalhou no aeroporto internacional.
Antes de pôr os pés lá, enfurnado no bairro pobre, afastado, onde muitas famílias não tinham o d mínimo necessário para viverem decentemente, ele ficaria deslumbrado diante daquele mundo que achou “maravilhoso”, sofisticado.
Novelas e filmes, com as ilusões de praxe, o encantaram até os 18 anos.
Na época, semelhante ao pai, após servir no Exército, desejou superar sua origem.
Entrou no mundo da literatura e história.
Dali em diante, nem as belas atrizes, com as sofisticadas roupas decotadas e as olhadelas sensuais, tampouco os mais emocionantes enredos o prenderam a qualquer telenovela ou seriado de TV. Filmes muito raramente.
Lia, lia compulsivamente.
Após concluir o período do quartel, e devido à camaradagem – para alguns, o popular pistolão – conseguiu vaga no aeroporto, pouco antes de completar vinte anos.
Que maravilha.
Ficou boquiaberto com aquele ambiente sofisticado. Por mais analítico e socialista que a literatura e a história possam ter tornado, não conseguira ficar impassível à suntuosidade.
Renato viveu à margem da riqueza, do luxo, do requinte da burguesa, das maravilhas que a tecnologia e arquitetura são capazes de oferecer.
Desconhecia que guardava dentro de si a tendência para o conforto. Quando este se apresentou ao seu alcance, não conseguiu controlar o impulso e se deslumbrou.
Perturbou-se face ao luxo que reina escancarado no aeroporto internacional duma megalópole como São Paulo.
Se este jovem sonhador nada sentisse ao pôr os pés pela primeira vez no aeroporto, diria um capitalista radical, talvez estivesse fadado a permanecer mais tempo na semifavela onde morava.
Diria que sua ambição não iria além das que têm os ladrões de galinhas, os que assaltam os cegos em porta de igreja, os que se conformam com o salário mínimo e os benefícios da Previdência Social.
Seria forte prova de indiferença em relação ao conforto e bem-estar, se suas opiniões se mantivessem as mesmas diante daquela visão.
Sebastião se vislumbrou durante mais de um mês diante de todo o luxo, sendo seu assombro comparado em intensidade ao dos três Reis Magos quando viram o recém-nascido Rei dos reis numa manjedoura.
No exemplo de Renato, o assombro vinha pela suntuosidade; diferente da situação envolvendo a manjedoura, exemplo máximo de simplicidade e desprendimento.
Sebastião viu, ouviu e, por vezes, serviu pessoas importantíssimas, umas anônimas, outras conhecidíssimas do público. Eram cantores, atores, escritores, jornalistas e atletas que não acabavam mais. Tremia que nem vara verde nos primeiros contatos.
Ora, uma coisa é criticar o sistema dentro de quatro paredes, isolado do mundo, muitas vezes numa casa de periferia, outra é estar diante das pessoas que imperam, que são perseguidas pelos fãs, que nos fazem sentir frio na barriga na terrível dúvida se devemos perguntar ou não: “você não é?”
Os dois anos e meio que passou no aeroporto forneceram o visto de entrada na turma daqueles que têm como meta fazer parte da classe média alta.
Se o destino não desse uma de estraga-prazeres, faria de tudo para alcançar a classe alta, nem que tivesse de mover montanhas ou atravessar o mar a pé, seguindo o exemplo de Moisés e seu povo.
Pisou em solo uepiano, tímido e deslocado como qualquer pobre que de uma hora para outra passa a dividir o cotidiano dos filhos da classe média alta, pelo menos sob alguns aspectos.
Teve forças suficientes para sorrir e começar sua “ambientação”. Registrou o maior número de comportamentos e atitudes pertinentes àquele seleto público.
Queria compreender seus anseios, esperanças e conflitos. Não que fosse fazer um compêndio sobre a psicologia dos filhos bem-criados.
Acreditava que compreendendo o novo ambiente nele poderia se inserir sem causar estrondo, sem se parecer aberração, um pássaro longe do ninho.
Em Guarulhos, havia se filiado ao PT, e contribuído com o que lhe coube nos últimos meses que antecederam as eleições de 1989. Foi a primeira experiência em política partidária.
Lançou-se de corpo e alma na ideologia socialista, e nunca descansava.
Ora, estava lendo Marx, rosnando as máximas de Proudon, vociferando pensamentos contra a ditadura brasileira, findada em 1985, com as eleições diretas, ora se metia nas intrigas ou nos bate-bocas quilométricos das facções internas do partido.
Quando não estava rondando porta de fábrica, farejando greve, à caça do menor conflito entre capital e trabalho.
Até chorar, chorou, quando Lula perdeu as eleições. Um choro com tal fervor, exclusivo dos ingênuos corações juvenis, nos quais sonhos de plena justiça social tão bem se acomodam ao lado do egoísmo necessário a cada ser humano.
Era um desses jovens que fazem das tripas corações para dar sua contribuição para causa humanitária.
Em São José dos Campos, não procurou o escritório do PT. De tanto se esquivar, acabou o esquecendo.
O motivo do esquecimento ele mesmo não saberia explicar com precisão. Mistura de falta de esperança e conformismo.
É que através de Machado, com o Alienista, Quincas e Brás Cubas, somado ao pessimismo de Diderot e as delicadas malvadezas de Sade, passou a ter certeza de ver no mundo que o cercava exemplos de atrozes injustiças.
Esta visão pessimista acabou por fragilizar o ideal de igualdade social.
Foi abatido no ponto mais utópico, mais quimérico, em que ele acreditava que todos os homens fossem iguais.
A influência do fundador da Academia Brasileira de Letras, somada a de George Orwell, com seu Grande Irmão manipulando vidas de modo tirano, no 1984, foram responsáveis pelo dissabor socialista do rapaz.
O coração virgem de misantropia não se metamorfoseia da noite para o dia em mente apática. Essa sensibilidade explica a atração que, já no primeiro ano de faculdade, o movimento estudantil exerceu sobre Renato.
Às vésperas das eleições para nova diretoria executiva do C.A da FPJ (Faculdade de Publicidade e Jornalismo), mostrou-se empolgado ao avistar os cartazes chamativos nos corredores das salas de aula, na cantina e no departamento de Jornalismo.
Convidaram os alunos a participarem do processo eleitoral e formarem chapas para concorrer.
A gota d’água foi quando quatro dos alunos que deixariam o C.A depois de 5 de outubro, dali a dois meses, quando se saberia a nova diretoria eleita, adentraram na sala do primeiro ano de jornalismo diurno, na qual estava Renato, e, esbanjando habilidosa oratória, comunicaram o fato de que até o momento não havia sequer uma chapa inscrita.
Argumentavam que, como as coisas estavam indo, não haveria ninguém para concorrer e que a entidade estudantil poderia fechar por falta de pessoas que a conduzissem.
Lançando mão de apelo emotivo, disseram que os calouros são os mais indicados para lá estarem. São novos, têm disposição e não estão tão sobrecarregados de tarefas como os veteranos do terceiro e quarto anos, debatendo-se com seus projetos de pesquisa e monografia.
Os veteranos saíram da sala.
Houve pequeno tumulto, tão próprio de aula interrompida, mas que aos poucos voltaria ao normal. Devido ao mencionado precoce prestígio de Renato por seus escritos nas revistas, foi fácil que a turma insistisse para que ele tomasse à frente.
Dentro de Renato avolumou-se a vontade que o impelia para tomar partido da situação e contribuir de alguma forma, nem que se tratasse de se candidatar a um cargo de colaborador.
Na sala havia mais três estudantes que partilharam do surto de entusiasmo.
Dez minutos do encerramento da aula, Renato Sebastião de Jesus, Rogério Barbosa Silvério, Sandra Mathias e Maria das Dores Pinel estavam convictos de que deveriam procurar os veteranos e saber de uma vez por todas no que consiste o centro acadêmico e como se faz para participar ativamente, concorrer a um cargo.
Vinte dias depois, os quatro calouros se juntaram a mais cinco, pois o número para formar a chapa requeria nove pessoas.
Apesar da vontade, eles estavam tão desafinados com os requisitos e manhas para se combater no M.E. (Movimento Estudantil) quanto o cidadão comum que é recrutado duma hora para outra, em praça pública, se filiar a um partido político.
Estavam semelhantes aos voluntários dos guerreiros cossacos, narrados por Gogol, quando iam combater os polacos e seus aliados. Tanto para aqueles quanto para os nove integrantes da chapa se aprende as regras do jogo jogando.
Emoções novas, fortes e às vezes constrangedoras tomaram os nervos e sentidos dos novatos.
Para se anunciar como chapa às eleições do Centro Acadêmico 7 de Setembro, divulgar os projetos de “governo”, as famosas propostas, tiveram que entrar nas salas.
Interromperam aulas.
Tornaram-se o foco da atenção durante vários minutos.
Minutos estes insuficientes para dizer tudo que os corações dos jovens, metidos na causa social, costumam forçar as bocas despejarem em torno de assuntos simples.
Era visível que não estavam habituados ao manejo das massas.
De todos, Renato, se não era o que tinha mais violência interior, quem mais sofria e se empolgava, como fazem as pessoas na defesa duma ideia, duma religião ou crença que acreditam ser a razão de viver, era, com certeza, quem mais experimentava novas emoções.
Como fingir indiferença ao livre trânsito que passou a ter entre os alunos? Como negar a intimidade que adquiriu com os “ricos”?
Como esconder o brilho nos olhos de alguns quando lhe viam passar? Como camuflar o prazer indescritível que o invadia quando recebia cumprimentos de pessoas com as quais não tinha qualquer relação?
Renato se sentia bem diante da condição de famoso. Essa condição o protegia da sensação de zé-ninguém recém-chegado à nata da pirâmide social que teve meses antes.
Em poucas palavras, o prestígio era escudo atrás do qual podia sufocar seu sentimento de inferioridade no seio da classe que tomava contato pela primeira vez.
A chapa tinha dois veteranos, dos nove participantes. Renato, no primeiro ano, se acomodou na coordenadoria de relações públicas.
No segundo ano, empolgado, disputava a de coordenador geral, espécie de presidente, termo maquiado, empregado em vários C.As e D.As que se mostram eriçados ao menor contato com o presidencialismo. Defendem tendência menos tradicional.
Como foi possível a Sebastião disputar o cargo de direção do movimento estudantil duma importante faculdade, como é a FPJ do campus da UEP em São José dos Campos, se em toda a sua vida nunca teve experiência na política estudantil?
É comum que aquilo que se aprende jamais se esquece. Com Renato não seria diferente.
A experiência política obtida nas reuniões, nas picuinhas e discussões quando ainda era militante esquerdista, somada àquela adquirida na persuasão de indecisos, poucos dias antes das eleições para presidente da república, possibilitaram apanhar o traquejo, o gingado e a autoconfiança, atributos tão necessários aos que se metem em pleitos eleitorais.
Em parte por que boa parte dos estudantes pouco valor dava para o movimento estudantil. Fosse por considerá-lo perda de tempo, coisa de quem quer desculpa para deixar de cumprir suas obrigações com o conteúdo; fosse por que daria muito trabalho em troco de nenhuma vantagem.
Seria fácil se destacar dos que têm as necessidades básicas satisfeitas sem esforço, o sujeito que conta com a experiência de lutar pelo autossustento.
Essa experiência fornecia a coragem para não se conformar com o ambiente hostil. A coragem dentro de Renato por sua vez gerava energia para transformar esse ambiente.
Como mais uma justificativa para a maioria dos estudantes evitar ao movimento estudantil é que os benefícios que o este podia gerar já era assegurado pelo investimento que os pais mensalmente faziam ao arcar as despesas para garantir o sossego para se dedicar aos estudos.
Enquanto Renato representava a minoria paupérrima.
Na prática e sem muito idealismo, os companheiros viram nele um boneco oportuno para ficar na linha de frente, levando paulada sem largar o osso.
Ao contrário deles, ele teria mais resistência, fruto da origem humilde, visto que sua vida era uma luta das bravas para se manter longe de casa.
A convicção nas palavras, nas propostas e o gritante carisma mostravam que ele saberia, se não se esquivar de todas, no mínimo não se deixar abater pelas críticas venenosas, pelas traições e conspirações normais em qualquer campo onde reinam conflitos de interesses, onde os homens lutam pelo poder.
No fim do segundo ano do curso, era uma barra dar conta das atividades extraclasse e marcar presença nas aulas espalhadas pelo período diurno.
Vivia dividido entre a coordenadoria geral do C.A e a colaboração para jornais e revistas.
Ser freelance rendia muito pouco. Dava para comer e manter o aluguel do pensionato sem que ele precisasse desviar dinheiro das carteirinhas ou de qualquer atividade lucrativa do C.A, como muitos veteranos no assunto induziam, uns com palavras dissimuladas, outros com acusações à queima-roupa.
A honestidade que bate violentamente no peito de Sebastião é a que faz morada na consciência de todos os escrupulosos, das pessoas de boa índole.
Como a ocasião faz o ladrão, é difícil negar que talvez cedesse à falcatrua caso não tivesse seu ganha-pão e estivesse faminto, desesperado, como o desempregado que vaga pelas ruas da cidade com o classificado de emprego debaixo do braço e, após levar vários “não há vaga”, volta para casa sem perspectivas.
Mas como não é o caso, mantém a ideia fixa de não ceder à corrupção.
Não o fez em momento algum.
E se dependesse dele e mais meia dúzia, poderia se colocar a mão no fogo pela idoneidade de quem participa do movimento estudantil, com certeza de que não a queimaria.
Acreditava que se no Congresso Nacional há oportunistas e interesseiros, existem também políticos de boa conduta, que cumprem seu papel de lutar em prol do social, que, aliás, não é favor algum, visto que recebem gordo salário.
Tinha a crença de que se deve separar o joio do trigo. Punir quem pisa na bola com a causa do País e expulsar do Governo os aproveitadores, bani-los do poder.
Sua estrela, ao contrário do que acontece na maioria dos casos, não se apagou depois de ter alcançado o posto de comando do Centro Acadêmico 7 de Setembro.
Após ter criado o curso de idiomas e encabeçado uma ou outra manifestação estudantil no campus, foi indicado, em meados do segundo semestre do ano de 1993, para concorrer ao cargo de coordenador regional e articulista do diretório central dos estudantes da UEP.
O DCE localiza-se numa pequena sala no magnífico edifício no qual a reitoria se encontra na Avenida Paulista, na capital.
A indicação talvez tenha sido um pouco pela proximidade de seu campus da reitoria e porque Renato lá ia com frequência, tornando-se conhecido dos estudantes que administram o DCE e de funcionários importantes.
Virou figura carimbada aos olhos do próprio reitor de extensão, que depois do reitor, é o mais importante, não na escala hierárquica, porque se fosse assim seria o vice-reitor.
Posava de “ministro da economia e do planejamento”, tendo o poder de viabilizar projetos, ao conceder os recursos necessários, sem esquecer de que é o responsável por liberar o pagamento das passagens para o deslocamento dos representantes estudantis que vivem visitando a reitoria à caça de reivindicações mil para seu campus, uma das tarefas do líder estudantil no ensino público.
A vida de Sebastião de Jesus deu uma guinada de 180 graus. Daquele joão-ninguém que se considerava, passou a ser peça fundamental, pessoa requerida.
Para várias propostas, reivindicações, memorandos, requerimentos, ofícios, era necessário sua assinatura.
Tinha prazer em ser solicitado.
“Homens são valorizados em função do que possam oferecer de útil ao seu semelhante, sem mais nem menos”, essa fala era tão recorrente na boca de líderes estudantis como o Eder, que acabaram mexendo na visão de mundo de Renato.
“É super comum que um sujeito não consiga agradar a todos, e por consequência surja em torno dele uma crosta de pessoas que nutra ódio gratuito, repulsa, desdém ou indiferença forçada”, dizia o Eder, aluno de arquitetura num dos congressos da UNE.
“Mas se o sujeito tem poder, ocupa posição de destaque, os inimigos, movidos pelo interesse, apresentarão comportamento distinto. Terão que camuflar os verdadeiros sentimentos. Temem ser vistos como adversários declarados. Acreditam que seriam mais prejudicados nos seus intentos.”
“Você receberá”, seguia Eder, “muitos sorrisinhos, tapinhas nas costas, palavras de elogios vindos daqueles que enxergam em você mera ponte para atingir certo objetivo. O puxa-saquismo é o lado cara da moeda. O lado coroa é o pegajoso lodo formado por xiitas com discursos sem nexo, que no fim se traduz assim: “si hay govierno, soy contra.”
“Os xiitas, radicais, opositores, buscarão te atrapalhar os projetos, fazer de tudo para que você fracasse em suas intenções de melhorar a vida da comunidade acadêmica.”
“Pior mesmo serão as raposas com cara de anjo, sujeitos que obedecem na cadeia alimentar do poder, atentos a devorar quem está no degrau acima e tomar o lugar. Pouco provável que matem o adversário. Contentam-se em puxar o tapete, deixando-o desacreditado pelas pessoas. As armas desses abutres são a calúnia, a perfídia, a fofoca.”
Ao ouvir esse desabafo de Eder, Renato lembrou consigo que havia, como novato, corrido várias vezes ao banheiro, escondido dos adversários, dos “amigos” e dos indiferentes, para lavar o rosto, abatido pela palidez e pela torrente de lágrimas, a cada violenta punhalada moral que recebia.
Superado o primeiro mandato de coordenador geral do 7 de Setembro, soube se enrijecer frente as dificuldades.
Passou a ser movido por mais uma crença confusa, a de que quando se está no poder ou em busca dele, a moral, a amizade, a honestidade são alegorias, ingredientes importante para dissimular interesses, mas jamais porto seguro no qual se possa ancorar com confiança.
Todo mundo é suspeito, para não dizer inimigo em potencial, e o que conta é manter a calma e que vença o melhor.
Cada mês que se passava Renato adquiria mais prestígio, notoriedade, entre as feras do ME uepiano. Nas eleições de outubro de 1993 foi fácil eleger-se um dos quatro coordenadores regionais.
Sobre suas costas passaria a pesar os interesses de 22 campi, quase 45 mil estudantes, espalhados pelo Estado de São Paulo, sendo que um campus fica na capital paulista.
Raro encontrar homem que põe o pé na rua, luta com todas as forças para obter o que quer da vida, manter-se enfiado somente no trabalho, indiferente ao amor.
Esse é caso de Renato.
Tem, como todo homem determinado, uma paixão a girar os neurônios e esquentar seu corpo.
A condição de meio sonhador, boêmio e de espírito romântico facilita a atração que Sebastião sente por uma mulher bonita.
A representante feminina em sua vida é uma mulher de vinte e cinco anos, último ano do curso de Odontologia da Unesp do campus de São José dos Campos, e que mora na casa dos pais na própria capital do vale.
Sendo a musa dos sonhos e a tormentosa paixão na realidade de Renato, essa moça merece descrição de corpo e mente.
Se não fosse pelo ditado que os opostos se atraem, se podia questionar que relação esquisita é essa.
De um lado, Renato Sebastião de Jesus, jovem, de origem humilde, atolado até o pescoço com o movimento estudantil, mais ativo do que conjunto musical em ascensão, andando para lá e para cá, com um discurso misto de descrença nas instituições sociais e rabugice socialista europeia, sem emprego, vivendo de bico.
De outro, Márcia Andrade Agostinho, estudante de Odontologia, metódica e sistemática, que gosta do bom e do melhor em termos de vestuário e alimentação, jamais se privando das refeições balanceadas, prestando cego respeito ao rigoroso regime que a vaidade obriga.
Olha só o estereótipo. Loira, cobiçadíssima, não rica, mas bem de vida, traços faciais encantadores, descende de boa família, todos com nível superior. E vai encanar com o Renato, pode?
Encontraram-se sabe lá como numa festa. Ficaram juntos pela primeira vez na companhia da alta sociedade joseense, porque até São José tem alta sociedade, ou quem acredita nela se enquadrar.
Dum lado, o advogado, seu aluno de espanhol, convida Sebastião. Doutro, Márcia recebeu o convite da filha da dona da casa.
Márcia o conhecia de vista. Sebastião nem sabia que a menina existia.
Conversa vai, conversa vem, e com a ajuda do imprevisto, acabaram se aproximando, se entenderam no pago que travaram, e resolveram dar uma atençãozinha mais especial um ao outro.
Tinham motivos. Renato meio deslocado, ninguém o conhecia naquele bolo de gente estranha. Márcia achando algo novo no papo do rapaz, vendo na companhia dele tábua de salvação para o tédio reinante nas conversas que havia travado antes.
Que interesse levaria o ‘camarada’ da política estudantil, com inclinação socialista, a tolerar festa em que os fricotes e manias dos ricaços são postos no mais alto tom? Com certeza haveria razões bem fortes, para as quais o convite do advogado seria a pequena ponta do iceberg.
Esse algo a mais vem do projeto que desde fins de 1994 martela a cabeça de Renato: montar uma revista destinada a professores e estudantes. Para tanto requer investimentos de terceiros, visto que ele mesmo é de uma dureza que faria Jó se sentir milionário.
Em festas como esta, esperava, talvez, com sua lábia voltada para este fim, conseguir chamar atenção de pessoas de destaque, endinheiradas e sem medo de investir, para que a revista saísse da condição de sonho. Expectativa compartilhada com o advogado Roberto Medeiros.
A ideia havia agradado ao advogado, que se propôs ao papel de promotor de vendas, apontando interessados. Anos dedicados à advocacia renderam preciosos contatos. Conhecia bem as principais famílias, do noroeste paulista e do Vale do Paraíba para saber que se eles achassem lucrativo o empreendimento, empregariam dinheiro. Anos antes de sair de São Paulo e vir fixar residência em São José, em meados da década de oitenta, mantinha escritório na capital do Vale.
Para si mesmo via nenhum interesse no negócio, estava com o burro na sombra, às portas dos sessenta anos.
Pensava na filha, Carolina Luzio Medeiros, amiga e colaboradora do professor de espanhol e que cursava publicidade na UEP. E na atual amante, Mônica Carlioli, estudante de jornalismo, em Bauru, que se formou em 1994 e que, devido ao seu gênio nada submisso, não tolerava, segundo ela, a caipirada das redações que lá existem, sem, no entanto, ter coragem de trocar o interior e arriscar a sorte nas metrópoles.
Se Renato tivesse êxito na revista, e preso pela parceria, a filha e Mônica teriam um sólido e vantajoso primeiro emprego. Todos que mantivessem laço profissional com Sebastião lucrariam se a revista vingasse, conjeturava Medeiros.
Dias depois da festa, Renato convidou Márcia, de início para o cinema, mas acabaram indo para uma das mesas do Bar Xereta.
Após aquele vai-não-vai que ocorre em primeiro encontro envolvendo dois tímidos, rolou o beijo que marcaria o começo do namoro.
Márcia mora sozinha na casa do pai. O sr. Agostinho vive noutra casa em Campos do Jordão com a terceira mulher e uma filha de cinco anos.
Fácil adivinhar que Renato pousou por lá na segunda semana de namoro. Para a menina nada de novidade. Havia namorado um estudante de engenharia do ITA, em Jacareí, dois anos atrás. O relacionamento durou três anos.
Como todo início de vida de casal “normal”, em que cada um se liga ao outro por livre e espontânea vontade, tudo é alegria, encantos recíprocos.
Razão pela qual nem ele nem a Agostinho se atentaram para suas naturezas tão distantes, personalidades quase arqui-inimigas. A dele, apesar de ambiciosa e revolucionária, pouco prático e sem noção de realidade. A outra, violenta, mimada nas relações interpessoais, porém, resignada a se contentar com o que o mundo oferece em termos profissionais.
Renato impacienta-se com o destino, quer alcançar posição melhor daquela que o berço concedeu; enquanto Márcia percorre o caminho traçado pelos pais. Passado o momento de novidade de viver debaixo do mesmo teto, as tensões surgirão e as brigas serão constantes na relação a dois.
“Uma pessoa deve procurar seu igual para casar, que tenha os mesmos interesses, que mostre determinação para crescer juntos, se não é encrenca na certa”, este pensamento é partilhado pelas mães de ambos, cada qual ao seu jeito.
Para a mãe de Renato, ligar-se a uma moça como Márcia, seria mal visto pela família diante das condições financeiras presentes dele.
O modo inquieto do universitário que muito fala, mas tem pouca disposição de garantir as despesas de uma casa, é mais que lenha para a mãe de Márcia abominar a atitude da filha de levar o rapaz para dentro de casa.
As duas mães pressentiam que a tormenta seria feroz na vida deles. E se não houvesse mudança na maneira de como cada um encarava a relação, o fracasso seria certeiro.
Passados quatro meses de namoro, da febril paixão, do romantismo fora de série, difícil de ser encontrado na lógica do descartável, o pai, médico veterinário, mais para contribuir com a felicidade da filha, menos por vontade própria, deu autorização a Renato para morar com Márcia na casa.
Não foi bem uma autorização do tipo: “eu te concedo...”, mas um empurrar com a barriga, fechando os olhos para o capricho da filha, no sentido de não a repreender.
Como aproveitou sua juventude, no fundo, o sogro esperava que o jovem o surpreendesse, tornando-se homem de família.
Sabendo da necessidade de uma pessoa centrada para estar do lado da filha, que passou um sério aperto na relação anterior, tinha esperança que o jornalista provasse ser merecedor de sua confiança, superando suas expectativas.
Podia ser o suporte que espera para sua filha, para levantar-lhe a autoestima e valorizar-se como mulher e esposa.
O rapaz tinha boa formação acadêmica, havia cursado universidade de prestígio. Era educado e prestimoso. Tinha tudo para levar a sério a meta de trilhar uma carreira e construir uma família se realmente visse em Márcia a pessoa por quem valesse a pena se dedicar.
“Quando se passa a conviver entre quatro paredes com uma pessoa a coisa muda”, certo dia o sogro tentou puxar conversa com Renato, quando percebeu que o clima entre filha e genro estava meio confuso.
Bastaram alguns meses para que os primeiros encantos se murchassem, e cada um, na sua própria razão, se espantasse com os comportamentos do parceiro e dissesse consigo: “O que é que eu estou fazendo do lado dessa pessoa? Aonde eu fui amarrar meu bode?”
Hoje, depois de um ano vivendo juntos, a instabilidade reina entre eles, empurrando-os para o fim inevitável. E esperada a separação de corpos, visto que a de sonhos e afinidades foi para o brejo há muito tempo.
Apelando para o lado prático da condução do relacionamento, quem pisou na bola feio foi Renato.
Os sonhos vendaram os olhos.
A miragem insensata duma subida no poder aquisitivo de uma hora para outra, de ver os negócios darem lucros calcados em hipóteses infundadas, impediu que Renato desse ouvido à realidade que gritava para que ele fosse devagar com o andor, que calculasse e evitasse dar o salto maior que a perna.
Minou a credibilidade que Márcia nele depositara, ceifando o encanto.
O sonho de Renato somava dívidas e mais dívidas. Credores importunavam a toda hora. Batiam à sua porta. Rosnavam em telefonemas constantes e ameaçadores.
Ele contornava com mentiras e mais mentiras, não no sentido de enganá-la, mas de não ver a moça nervosa, descrente. Tolices de homem que está encurralado. A confiança dela mirrou.
Quando a mulher perde a confiança no macho é sinal vermelho.
Vá lá tentar frear os sonhos dos obsessivamente ambiciosos, das pessoas que acreditam ter uma missão sublime, que devem alcançar a qualquer custo certo posto, o qual, às vezes está muito acima das possibilidades reais da média dos seres humanos.
Indivíduos assim são mulas de teimosia. Que gloria é quando um desses, depois de berro e esperneio, compreende que no caminho que traçou há obstáculos de montão, e que se não forem levados em consideração, serão intransponíveis.
Essas pessoas se acreditam divinas.
Renato resistia a privações mais básicas. Se não fosse por Márcia e seu trabalho, Renato, depois de colado grau na UEP, sequer teria dinheiro para andar de ônibus ou condições de fazer as três refeições diárias.
Havia perdido o privilégio de lecionar Espanhol lá por não ser mais aluno e as revistas diminuíram a procura por seus escritos, visto que não tinha mais o status de estudante, mas de jornalista desempregado.
Por mais que a Márcia, fraca e resignada, mas coerente com o moderado princípio de classe média, tentasse abrir os olhos dele para que notasse os buracos, compridos e profundos, à sua frente, ele acreditava poder saltar todos e atingir o outro lado.
Como artistas e atletas, Renato se sentia arrastado pelo desejo de alcançar o pódio para ser aplaudido pela pessoa amada, ter o respeito dos demais e posição social consolidada.
O seu ponto fraco é que, não dando ouvidos à realidade, deixou-se conduzir pelos caprichos e mimos do amor-próprio.
Agostinho, se nunca foi rica e esbanjadora, jamais teve que passar privações nem estava disposta.
Ao ver a resignação do rapaz com a falta de dinheiro para contas de casa, e, o que era pior, ter pagado mais de uma vez a credores que batiam a sua porta, concluiu que ele havia, de certa maneira, se acomodado a comer o que ela punha no prato, através da tosca mesada que recebia do pai.
Achou que seria melhor se separar, não sem antes sofrer, chorar, se descabelar. Dele gostava de modo franco.
Forçada exclusivamente pelas circunstâncias, ela soube pôr um ponto final no que dava pistas de se tornar um tormento.
De um lado, ela cobrando que ele saísse daquela dependência, que abdicasse dos sonhos. Na cabeça dela, adaptada à estabilidade social, é impossível entender o que leva o visionário a ver uma ilha para aportar, onde a maioria só enxerga mar.
Da parte dele, acreditava que em breve um de seus planos daria retorno para pagar cada centavo que devia a ela e que Márcia dele teria orgulho quando o visse vitorioso.
O retorno não vinha. A dificuldade crescia. Com ela o desânimo da moça e o desespero do rapaz.
Essa instabilidade no relacionamento, juntada com a falta de perspectivas práticas em alcançar recursos financeiros são o que maculam o sorriso de Sebastião no momento.
Sorriso que costumava manter-se debochado e refrescante, mas que ultimamente exala um mormaço que ofusca sua suavidade.
Alguém que não o conheça poderia classificá-lo de avarento, ao vê-lo manipular, de modo atento, as cédulas de reais que os alunos deram para a matrícula no curso de Espanhol.
Era tentativa de valorizar a atitude focada em ganhar dinheiro para bancar as despesas que a vida exige. Talvez aprendizado da convivência com Márcia.