homem não chora, berra

Homem Não Chora, Berra

Primeiro romance do autor. Lançado em 1998, conta a história de um recém-formado em jornalismo, que busca seu lugar ao sol enquanto atravessa tormentos e privações.


Compre Agora


Contos

Na escola de idiomas, o silêncio durava uns longos minutos. O telefone parecia que havia encerrado a frenética e intermitente chiadeira, tão comum nesses cinco dias. Há trinta minutos, os dois últimos novos alunos saíram, depois de efetuada a matrícula com cheques pré-datados.
Sob a luz das seis lâmpadas florescentes e a claridade natural do dia que se vai findando, o professor de espanhol, e um dos administradores do curso, lê Balzac. Força concentração, mas estava apreensivo por detalhes corriqueiros.
Como tudo levava a crer, o curso seria uma beleza, o número de inscritos estaria acima das expectativas.
Sentado na cadeira pouco confortável, embora forrada com couro no assento e no apoio às costas – e por isso muito melhor quando comparada às duras e desajeitadas cadeiras universitárias que servem às salas de aula.
Renato inclinava a cabeça em direção ao livro aberto.
Os móveis e as cadeiras ali, porém, estavam longe de serem semelhantes aos de primeira linha encontrados nas escolas de idiomas convencionais. Não que Renato e os companheiros relaxassem neste aspecto. Faziam o possível para oferecer o maior conforto. É que faltava grana. É a sina de estudante, mesmo que enverede para o lado mais empresarial.
Se falta grana no grupo, sobra entusiasmo e criatividade para dispor os móveis e tornar a sala de idiomas, no mínimo, agradável aos olhos.
A sala se conservava limpa, pintada e com quadros arranjados no improviso. Como destaque há o que mostra o café em Paris, com jovens sorrindo, papeando e mostrando a fisionomia feliz, comum em fotos comerciais, que quer despertar o interesse por aprender o francês, e a esperança de dar um passeio pela França. Trata-se do cartaz da Aliança Francesa, na moldura de 60 cm x 20 cm, dado por sua antiga aluna, a qual havia estudado francês há três anos.
Eram cinco pobres estudantes. Bem, não tão pobres assim. Com exceção de Renato, todos tinham carro e vinham de família com razoáveis condições. Falo em relação aos recursos financeiros para enfeitar uma escola, que eram insuficientes. Eram estudantes, e usavam a sala cedida pelos D.As para oferecer o curso, cujo alvo, os principais atraídos, era professores e estudantes da própria universidade.
O responsável pela ideia do curso foi Renato. Ele viabilizou o espaço, a sala de idiomas, como ficou conhecida, através de negociações com o diretor do campus e representantes das demais entidades estudantis da UEP em São José dos Campos.
No início, chamou dois estudantes para compor parceria. O curso começou oferecendo inglês e espanhol. Um ano depois, havia o italiano, francês e alemão. A “remuneração” do professorado era simples: oitenta por cento ficavam para os professores e os vinte restantes iam para os cofres do C.A.
Para quem desconhece a lógica da arrecadação em cima de atividades com fins lucrativos promovidas direta ou indiretamente por entidades estudantis (são quem cedem espaço, e, automaticamente, fornecem autorização para que determinado comércio funcione temporariamente dentro da universidade) pode achar que há um gritante desnível quanto ao valor destinado ao diretório acadêmico. Mas não há. A regra é que sejam destinados de cinco a dez por cento. Como os profissionais eram autônomos, não mantendo vínculo empregatício com o C.A, os vinte por cento caracterizavam uma espécie de aluguel pelo espaço cedido, nada mais.
Desde o curso de férias de julho passado, a clientela vinha se diferenciando. Muitos alunos eram da comunidade, sem qualquer vínculo com a UEP. Quanto mais melhor – era a opinião de todos. Devido ao sucesso, as propagandas extracampus foram intensificadas nos jornais, nas rádios e cartazes espalhados por lugares estratégicos no centro da cidade.
Nenhum aluno ainda havia reclamado das cadeiras ou desistido de assistir às aulas por conta delas. Seriam uns monstros, insensíveis, se não levassem em conta o quanto de zelo os organizadores investiam na arrumação da sala, em passar a matéria na lousa, nas brincadeiras durante as aulas, na distribuição das fitas cassetes.
Era justo reconhece o trabalho levado a sério pela equipe de universitários que lecionavam. “Para quem quer aprender, o que importa é a capacidade e interesse do professor em ensinar, não o local,” os professores ouviam este comentário quando procuravam se desculpar por qualquer inconveniente. “O local aqui é simples, mas é bem organizado. Isto faz a diferença,” elogio recebido do professor doutor que se matriculou no curso de Italiano.
No caso da cadeira, para o aluno que passa de 60 a 90 minutos sentado nela há menos inconvenientes quando comparados ao que sofreria Renato se atravessasse o dia inteiro ali alojado, tirado o tempo que estivesse lecionando. Neste caso, há necessidade de assento diferenciado, caso não queira, em pouco tempo, trocar de coluna vertebral.
Havia contabilizado os cheques dos alunos chorões, que pedem prazo maior para poder descontar no Banco. De dinheiro mesmo, duas matrículas; mas dava para tapar a boca da “carrasca” do pensionato. O adjetivo de carrasca deve-se à opinião de Renato que, como morador de pensão, vê o locador como a pessoa mais vil e mesquinha da face da Terra, ao ganhar pouco e pagar os aluguéis a duras penas.
Por causa da habilidade interpessoal, o fino trato e carisma, Renato jamais seria julgado pelo defeito de, às vezes, nutrir ódio doentio a certos sujeitos. Ele sabe ocultar as emoções negativas e realçar as positivas, as socialmente valorizadas. Ele, porém, está no rol de pessoas complicadas, caprichosas, que, por vezes, pensa que a hipocrisia vale a pena ser exercida.
Em horas tensas, no entanto, se fosse possível causar prejuízo considerável à proprietária, sem risco de sem risco para si, Renato faria sem hesitar. “Que delícia seria explodi-la, e nunca ser descoberto. Ou incendiar sua propriedade”, ainda bem que no caso de Ricardo este é só desabafo.
Outro tanto da grana saudará a conta mensal do marmitex.
Conta e reconta as notinhas de dez reais. Há notas miúdas de R$ 1,00. Chega a sentir pena em ter que se desfazer das pobrezinhas de maneira tão rápida. Pelos cálculos, da parte que lhe cabe, após pagar as despesas básicas do mês, ficará com pouco mais de vinte reais, se o número de alunos para o espanhol estacionar em onze pessoas. De agora em diante, o que entrar de extra, vai para seu bolso, descontado os 20% que deve entregar nas mãos do Regis, destinados à manutenção das despesas correntes do curso, como lousa, pincel atômico, chamadas no jornal...
Regis é professor de inglês e quintanista de engenharia mecânica.
Renato foi o responsável pela implantação do curso de idiomas no campus local. A ideia de curso como este, no entanto, não tinha sido dele. Antes conhecera a experiência de Ricardo de José da Silva, lá do campus de Bauru, presidente do DAMA, que havia se orientado pelo exemplo bem sucedido da ITE e demais instituições de ensino, nas quais os alunos começavam a oferecer cursos de idiomas para comunidade.
Numa de suas viagens a Bauru, visitou tanto a UEP quanto a UNESP e ITE e viu, in locus, como se estruturava o curso e como fazer para implantá-lo na unidade da Capital do Vale.
Renato ajeitava na carteira as duas notas de dez reais quando o telefone disparou a tocar. Que delícia ouvir a fricção de notas novinhas de dez reais. Quanto mais para alguém que durante muito tempo vinha carregando os centavos contadinhos para a passagem de ônibus.
_ Boa tarde!... Curso de Idiomas PRA FRENTE É QUE SE ANDA.
_ Pô cara! Cê não tinha outro nome menos chavão pra pôr num curso?
_ Não. Mas estamos aceitando sugestão para o próximo semestre.
_ Tá... – Desligou abruptamente.
“Só me faltava esta, um babaca ligar para dar trote”, o recém-formado em jornalismo se irrita com a peça que lhe pregaram ao telefone, e não era a primeira. Ontem mesmo foram duas. Levanta-se, apanha o Pai Goriot de Balzac, abre na página marcada e inicia a leitura.
“Bem, mais trinta minutos dou por encerrado o expediente de hoje”, desabafou, enquanto lutava por manter a atenção na leitura. Vautrin buzinava na orelha de De Rastignac um futuro golpe do baú na Srta. Vitorina, quando o fone reclama atenção.
_ Boa tarde!... CURSO DE IDIOMAS PRA FRENTE É QUE SE ANDA.
_ Alô... – A menina não conseguiu evitar, soltou uma risadinha quando ouviu o interlocutor pronunciar o nome um tanto fora do comum. Também havia acontecido quando ela e a amiga Dora leram o anúncio no Vale Cultura. Continuou:
_ Queria saber do curso...
_ Bem!... – Renato se ajeita para repetir pela vigésima primeira vez o que vinha dizendo ao fone desde manhã.
– Qual o curso?
_ Inglês e espanhol...
_ Vai fazer os dois?
_ Não... Um é para minha amiga que está aqui do lado – Dora cutuca a Perla. – Para!
_ Quê?
_ Nada não...
_ Bem, o curso de inglês é o professor Régis que ministra. O de espanhol sou eu. O curso de férias terá aula todos os dias com uma hora e meia de duração por um mês. Vai do dia 15 de janeiro a 15 de fevereiro. O preço é R$ 65,00; e pode ser dividido em duas vezes.
_ Tem certificado?
_ Certificado corresponde ao curso básico. O básico compreende dois semestres. No caso, neste período de um mês corresponde a metade do curso básico, quer dizer, um semestre. Logo, para ter direito ao certificado, terá que fazer o semestre seguinte, que começa em março, ou esperar o próximo curso de férias em Junho/96.
_ Perguntei por perguntar... Até que horas vocês ficam aí?
_ O dia todo... Até cinco e pouco...
_ É que a gente sai do serviço depois das cinco e meia.
_ Se quiserem, eu posso esperar...
_ Ótimo, vamos tentar ir hoje – Renato se alegra, expectativa de grana à vista. – Caso não consiga chegar a tempo, volto a ligar amanhã.
_ Tudo bem, estou esperando...
_ Tchau.

Agitado que ficou, o jornalista se ergueu da cadeira detrás da grande escrivaninha. Correu para a de tamanho menor. Abriu a gaveta. Depositou as fichas das meninas que havia acabado de preencher ao telefone. Na ficha constava nome e telefone para recado. “Tomara que venham... precisam vir.” A tocha interior tinha inflamado.
Para diminuir a tensão, provocada pela expectativa da chegada de mais duas alunas, saiu da sala do C.A em direção à lanchonete Baianuep que fica bem à frente, a qual é o point de professores, alunos e funcionários que gostam duma cerveja gelada regada a um bom papo após o expediente.
Muito raro, serve de abrigo para quem foge das obrigações, matando aula, escapando da repartição, para se refrescarem a horas incertas no decorrer do dia.
Pediu uma coca-cola e salgadinho. Ernesto, o proprietário, o recebe com sorriso que confunde quanto à emoção que os provocou: rancor ou prazer.
Pelo jeito meio empolgado, meio receoso, qualquer ex-endividado adivinharia que o jornalista tinha débitos contraídos com Baiano. Foi justamente a sensação de segurança dada pelas notas no bolso que o levou a se aproximar do balcão. De modo todo pose, todo cheio de moral, disse: “Grande baiano! Então, quanto devo mesmo?”
Apesar de saber que este “caloteiro” é dos que pagam, mesmo que passe dois ou três meses rolando a dívida, se esquivando de visitá-lo para escapar da cobrança, o proprietário desacreditou que fosse hoje o dia do esperado recebimento e arriscou frases para ter a certeza que era.
E era.
Contabilizou tudo. Não cobrou juros. Nunca cobrava juros de ninguém, nem daqueles que deixavam a conta pendurada por mais de seis meses.
Talvez por isso que não enriquecera. Agia assim, não por medo de perder a clientela, sim pelo seu simples modo de ser. Não se agarrava à conquista ou à conservação nervosa do dinheiro. Dando para pagar as despesas e criar os filhos era o que importava, embora todos estivessem crescidos, alcançado a maioridade.
Raro alguém levar mais de um mês para pagar.
“A universidade, afinal, ainda é uma Torre de Marfim”, o jornalista havia ouvido essa frase muitas vezes. Acabou concordando que poucos eram os que enfrentavam precárias condições de subsistência como ele, Renato.
Quitada a dívida, o papo rolou solto entre os dois por mais dez ou quinze minutos.
A caminho de volta à sala do C.A, atravessa o enorme estacionamento, e, na tentativa de ser mais ágil, toma o atalho, passando por cima do que era para ser grama, se os pés dos transeuntes não a esmagassem e contribuíssem para sua extirpação.
Num dos vastos corredores que compõem o campus, para em frente do mural. A propaganda da festa da turma do segundo ano de jornalismo, a ser realizada no Revolution Café, despertou a atenção, mais pela criatividade do cartaz que por interesse na festa.
Por falar em festa, há quanto tempo não ia a uma? Perdera a conta. No ano passado, quando ainda estava na condição de estudante, tinha parado de ir. A política estudantil e as deps vinham sugando todas as energias.
Para ser franco, havia deixado de ver graça em festa de universitário. Se no primeiro ano de curso tudo era novidade, magia, no quarto ano o doce havia enchido, e nem tolerava mais o simples cheiro. Os papos, o exibicionismo das carcaças, das bundas e dos rostos, as músicas, as bebidas, tudo parecia tedioso.
Talvez estivesse entrando na idade “adulta profissional”, de só querer e ver trabalho à sua frente. Incomodava com o que começou a considerar como falta de rumo, organização e responsabilidade para com o dia seguinte dos que frequentam festas. “Bobeira minha...”, balança a cabeça no sentido de negar a ideia absurda.
Afinal, a diversão seria na sexta-feira à noite, e no sábado raramente se tem aula. Concordava que um pouco de distração faz bem para a cabeça.
O problema é com ele.
Enjoou-se dos bichos grilos, dos incensos fedidos, das ideias metafísicas, da expressão corporal preguiçosa, desleixada, dos mauricinhos, das patricinhas, de ouvir sobre viagens ao exterior ou praia do literal brasileiro, de carros importados, da exibição de cartões de créditos, de congressos internacionais, de celulares, dos papos-cabeça, movidos à cerveja, que professores travam com alunos “dedicados” na calada da noite.
Criou ojeriza às panelinhas, aos grupinhos blindados. Não queria mais festas. Queria ficar longe delas, muito longe, longe, longe!
Não gastou parado todo o tempo que levou refletindo sobre a consolidada aversão às festas universitárias. Vinha caminhando a passos lentos.
Aproveita para relaxar enquanto caminha. Os carros que passam, as pessoas que circulam, os motoqueiros que conduzem atraem a direção de seus olhos.
Mais uma vez a máquina de refrigerantes da coca-cola chamou atenção.
“Droga, a cantina fechou”, lamentou-se.
Queria experimentar aquela encrenca, mas não tinha ficha, e por ali só na cantina que se podia comprar, a qual estava fechada. Em período de férias escolares a proprietária baixava as portas assim que davam cinco horas.
Na sala, satisfeito pelo lanche, começa a organizar os materiais. Volta e meia faz modificações para que bem sirvam como instrumentos didáticos às aulas de Espanhol, que começam segunda-feira que vem.
Da sala do escritório volta para a de aula.
Viu que Regis havia trancado a porta à chave. Do seu chaveiro, pegou a da porta, e a abriu.
A intenção, quando entrou na sala, era a de pegar o toca-fitas, nada mais. Involuntariamente vibrou mais uma vez com a beleza da reforma que os dois professores haviam produzido durante os últimos cinco dias.
Lousa nova, que chegou na terça-feira, junto com os pincéis de cores vermelhas e pretas. As paredes pintadas com cor de creme. O piso imitando um grande tapete verde. Nas janelas, os vidros lavados e a armação de madeira envernizada.
Renato arranjou cartaz com foto de uma esquina agitada de Paris. A intenção da foto do café é para alegrar os pinguços e dar um toque sofisticado. Regis gostou da ideia. Não dando o braço a torcer, pondo lenha na competição de perfeccionistas, obteve a armação. Como resultado, eis o quadro dependurado.
Segurou firme na alça do rádio. Trancou a porta e passou para o escritório, que é cópia perfeita da sala de aula.
A diferença reside na disposição dos móveis.
E há mais móveis diferenciados. O arquivo de aço, com seis gavetas, comporta as provas, testes, fichas dos alunos e ex-alunos. Duas escrivaninhas, uma desmontável, de zinco e a segunda, pequena, de nogueira. A cadeira executiva estofada e mais cinco universitárias. Duas lixeiras para os papéis amassados. O sofá estofado preto. O grande quadro que comporta avisos gerais, distribuição de horários, aulas e cursos.
No tempo das vacas gordas, assinavam a Folha de S. Paulo. Ora o Vale Paraibano ora o Gazeta do Vale, trazidos por Regis, prestigiavam o jornalismo joseense. Ter duas ou mais assinaturas ficaria oneroso.
_ Sábado, se o GV não der pra trás, a reportagem sai – Regis, ao telefonar da própria redação, lá na Nelson D’Ávila, passava para Renato a confirmação do tão esperado apoio cultural dado pelo jornal.
_ Ótimo, aí o pessoal vai telefonar que nem doido. Temos que a partir de amanhã ficar como no horário normal, até as cinco ou seis horas da tarde – Renato emendou o otimismo.
A reportagem que aludiram na conversa rápida que tiveram ao fone foi realizada no dia anterior.
A jornalista Vanessa fez a matéria e lançaria no caderno Cultura, pela segunda vez. A novidade agora é que poria mais destaque no Curso de Idiomas da UEP, meia folha na segunda página e não cinco linhas no espremido ACONTECE NA CIDADE.
A jornalista, veterana mais animada, na opinião de Renato, no ano que colou grau na UEP teve a sorte de ingressar no jornal. No entanto, permaneceu humildade, e manteve o contato com os amigos de Faculdade, apoiando iniciativas como a de Sebastião.
Sentado na cadeira, apanhou novamente o romance, e forçou a leitura. Os olhos escapavam com facilidade das páginas e grudavam nos ponteiros do relógio pregado na parede. Eram seis horas. “Será que não vêm?” pensa nas meninas que telefonaram há meia hora.
Seis horas e vinte minutos. Momento exato em que se ouviram duas vozes nas proximidades romperem o silêncio.
Dora e Perla apareceram à porta do C.A. Renato, sobressaltado, deixou a cadeira, pondo-se de pé. Passou a mão nos cabelos, no rosto. Pediu educadamente que entrassem, que era ali o local que procuravam.
_ Boa tarde...
_ Eu sou a Perla.
_ Legal, podem entrar por aqui, por favor.
O sorriso acanhado que o professor de espanhol emite, diante das futuras alunas, vai além do interesse em pôr as mãos nos R$ 130,00. Por mais que queira ver o ser humano reduzido a números, a valores monetários, não consegue. Nunca foi seu forte o estilo neurótico por grana.
A mente procura lhe oferecer as atitudes básicas de capitalista, o coração as repele.
Para administrar o empreendimento recusa-se a apelar para a interesseira utilização das pessoas, de distribuir sorrisos, da forçada familiaridade com os clientes e de querer levar vantagens em cima dos fornecedores. Acredita que não precisa fingir o que não é para escapar do gosto amargo do fracasso.
Seria complicado agir diferente do que representou toda sua vida no movimento estudantil, no aspecto de encarar as pessoas. Deveria agora mensurá-las pela capacidade de retorno financeiro e atirar no lixo princípios e camaradagem?
Há um defeito, no entanto, que Renato vem lutando para eliminar.
Quando encontra duas mulheres, e se as duas não forem igualmente bonitas segundo seu gosto, ele tende a direcionar os olhos e instintos para a mais bela. Por vezes, despreza a mais rica em prol da mais atraente.
Dora é muito bonita, segundo a ótica do jornalista, deixando para trás a colega Perla. A moça tem os olhos verdes azulados, tez rosada, cabelos ruivos, compridos e encaracolados. Dotada de sorriso que atraiu o jornalista de tal modo a provocar nele o incômodo desejo de beijar aqueles lábios carnudos.
Ambas eram magras, se bem que Dora fosse ornada de magreza duvidosa, a chamada falta magra. Não lhe faltavam carnes. Toda roupa lhe caía bem. Era esbelta.
“Ela trazia no rosto a fisionomia que afastava à primeira vista”, pensa o rapaz.
“Se ela arranjar namorado, pode-se dizer que o sujeito estava apaixonado pra valer ou tinha perdido a esperança de encontrar coisa melhor, que se atracou a ela para não ficar na mão.”
Mais tarde, Renato ficaria envergonhado por essa brincadeira que passou por sua cabeça.
Que raio de “fisionomia” é esta para impressionar tanto Renato?
Nada além da média de muitas adolescentes.
Os olhos arregalados, a enegrecida pele envolvendo o globo ocular, os lábios finos e cerrados, o rosto chupado, o desgaste físico incompatível com a faixa etária, os lábios cerrados, sem sorriso. Perla Paliza Representaria bem o perfil da governanta Jane Eyre, de Charlotte Brontë.
Embora Perla fosse crítica de si mesma, não tinha complexo nem faltava namorados. A determinação, lábia e saber aproveitar a ocasião a ajudava a conquistar de quem quisesse ver a seu lado.
A enegrecida pele em torno das pálpebras denuncia o excesso de preocupação no trabalho.
Embora a magreza fuja da média da mulher brasileira, Perla conserva porte elegante, quando veste trajes que realçam suas formas nos dias frios de inverno.
Diante de Renato, ela se mantém séria. Não é para causar impressão. Ela é fechada, tipo de personalidade que reserva o sorriso para os amigos.
Quando alguém a presencia sorrindo, tenha certeza que é um dos sorrisos mais puros e sinceros de toda a face da Terra. Quanto mais raro, mais autêntico é o sorriso.
Impressionado com Dora, o jornalista consegue, partilhar a atenção na amiga. Tem sensibilidade. Pensa que se olhar muito para a ruivinha, Perla ficará sem graça, magoada. Conversa de igual para igual com ambas, usando a arte do profissional das palavras.
_ Bem, os livros de espanhol são estes aqui – Renato passa às mãos de Perla o material didático. – E o de inglês – Dora o interrompe:
_ Eu decidi não fazer desta vez... Sabe, estou fazendo projeto de férias, e justamente só disponho da noite para me encontrar com os colegas...
_ Entendo – Fica desapontado, lá se vão sessenta e cinco reais. Fecha o armário e volta para sua escrivaninha.
Antes, oferece assento para as meninas. Dora senta. Perla se recusa, demonstra pressa.
_ Sempre estão tendo novas classes, né? Eu posso fazer depois...
_ Claro! Novas turmas iniciam nos períodos de férias ou no começo de cada semestre letivo.
Perla retirou a quantia da bolsa tiracolo – dessas que as mulheres passam a carregar assim que entram na puberdade e têm que lidar com a menstruação. Ao lado dos absorventes há produtos para retocar maquiagem e todo o gênero de documentação e apetrechos. As mulheres são hábeis em driblar os seus inconvenientes, e deles peneirar o prazer. Quer prova? Veja a variedade de tamanho, acabamento e estilo das bolsas, sem contar a elegância no andar de cada mulher ao carregar uma.
Passa o dinheiro para o jornalista. Mesmo que quisesse, como Renato se furtaria ao prazer que lhe deu o gesto?
O rapaz de pronto preencheu o recibo com os dados da nova estudante e pediu para que assinasse. A primeira via para o Centro Acadêmico e a segunda entregue à jovem.
Entusiasmado, Renato ainda se permitiu um gracejo.
_ Infelizmente nem posso oferecer um cafezinho para vocês. Mas quando a aula começar a gente vai providenciar.
_ Não somos muito fãs de café. Se fosse um suquinho, até que ia. Mesmo assim, obrigada pela intenção – A ruivinha respondeu, enquanto Perla sorriu.
Elas duas iam saindo porta afora. Renato ia atrás, falando sobre o curso e outros detalhes tão importantes de serem explicitados. Queria evitar ao máximo os prováveis dissabores entre escola-aluno, professor-aluno, ao término do período de aula. Porque, sob a égide do código de defesa do consumidor, a maior parte das propagandas, depois de adquirido o produto ou serviço, deixa o sabor de enganosa na boca do cliente moderno.
O recém-formado apreciava as curvas e quadris da ruivinha, sem deixar de admirar a altivez de Perla, mistura de resistência e insegurança, talvez por ter pressentido a preferência do rapaz.
Junto da grande porta que dá acesso à parte externa do pátio dos diretórios, houve cumprimentos, despedidas finais, e as duas seguiram caminho.
Renato voltou para sala do C.A, até se sentou na cadeira. O formigamento o arrancou dali e fez retornar para o lugar onde havia se despedido das garotas. De lá pôde visualizar, sem que elas o vissem, as duas jovens paradas, defronte a um Escort GL azul.
Ainda na sala, quando elas o interrogavam sobre o curso, Renato soube que Perla era a motorista. Como boa parte dos motoristas, ela exibia as chaves do veículo, ora manipulando-as, ora deixando-as à amostra em cima da mesa.
Quando de longe viu abrir a porta do volante, com charme tão característico das mulheres independentes em termos financeiros, sentiu não sei quê de admiração.
A admiração foi mais adiante. Num desses lampejos de lucidez que nos fazem visualizar a possibilidade de ter algo que jamais possuirmos, o professor de espanhol imaginou-se metido numa possível conquista.
“Uma namorada de carro? Nunca tive. Talvez fosse divertido! Se ela, nova daquele jeito, tem um carro é porque deve ser bem de vida. Não rica, bem de vida.”
Para compreender a diferença que Renato faz dos termos “rica” e “bem de vida” não se precisa esquentar a cuca. Basta dar vazão ao preconceito, certa ideia infundada de que rico não trabalha, quanto mais em posto de gasolina. Admirou um pouco mais a imagem das duas amigas e depois resolveu entrar.
As únicas formas humanas no campus eram as dos vigias, quando trancou a sala do C.A e seguiu para o ponto de ônibus carregando as bugigangas escolares habituais, de peso considerável.
É bom usar os “recursos” da tecnologia. Como se manipula um vídeo, interrompe-se a cena das duas amigas que vão seguindo no Escort pela Tamoios para contar um pouco da história da família de Perla Paliza e, no capítulo seguinte, voltar-se com tranquilidade para as duas amigas.
Nascida em Reginópolis, região de Bauru, sua família mudou-se para o Vale do Paraíba na década de setenta, exatamente em outubro de 1978, quase dois anos após o seu nascimento.
Quem os atraiu para São José dos Campos foi um conhecido do pai, ex-patrão, engenheiro civil, que incentivou o pedreiro número um a segui-lo. O pai passaria à condição de mestre de obras duma construtora que, embora com menos de um ano e meio no mercado, tinha serviço de montão para dar cabo tanto na capital do Vale como nas cidades vizinhas.
O Sr. Paulo dos Santos Paliza, moço de 26 anos na época, estatura mediana, desde que chegou em Reginópolis, havia cinco anos, vindo de Matogrosso do Sul, trabalhava com o engenheiro, no qual depositava muita “confiança”.
No momento do convite não viu necessidade de procurar outro patrão e, não pensando duas vezes, aceitou acompanhá-lo. Ele, dona Endrondina Paliza, em solteira, Endrondina Batista, e a filhinha seguiram o rastro do empresário construtor. Na nova cidade, moraram uns oito anos em Santana, sob o peso do aluguel.
Em meados de 1986, chegou a vez de pôr à prova a paciência da esposa e verificar se tal estrutura familiar sobreviveria às tentações que o destino volta e meia desfere contra o seio da família para ver até aonde vai a unidade.
A partir da superação, ou não, de obstáculos como este é que se saberá se a família se manterá unida, se vingará, ou se será dado o pontapé inicial para o burocrático processo de separação e o divórcio amigável ou litigioso.
Endrondina, baixa estatura, cabelos pretos e escorridos, corpo arredondado, sem ser gorda. Dona de casa do interior dedicava-se com afinco a exclusiva e árdua ocupação de zelar pelo lar e filhos.
Criada no meio rural traz na fisionomia marcas de um passado cheio de forte labor. Calma, pacata, zelosa e que exala tranquilidade. Carregava à barra de sua saia três crianças, com doze, onze e nove anos, quando o marido se enamorou pela bebida e o caos se instalou.
A prova não poderia ser mais dolorosa para Endrondina.
Boa parte do que ganhava como remuneração ia para o consumo diário de álcool.
E que horror o álcool dá a certas fisionomias. Embora não sendo ideal de beleza masculina, a bebida trazia sérias deformações.
Assemelha-se a esposa na pele violácea, que na adolescência ele tinha rosada, nos olhos pretos, nos cabelos negros lisos, porém curtos.
O corpo vem desengonçado, embora magro. O que realça são as pernas tortas, à moda boiadeiro. Por ser ele bem claro, a bebida deixava manchas ora azuladas ora avermelhadas no rosto, sem contar a pele macilenta, os olhos fundos, a testa enrugada e os glóbulos oculares avermelhados e saltados.
Antes de a bebida tiranizar seu corpo, ou quando estava sóbrio, qualquer um que visse o casal Paliza na rua, pensaria tratar-se de parentes, talvez irmãos, tamanha era a certeza que um espelhava a fisionomia do outro. Podia-se dizer que nasceram um para o outro. Só o culto desesperado à bebida é que veio balançar essa crença de dona Endrondina.
O inconveniente do alcoolismo está longe de se resumir no fato de que a pessoa gasta cada vez mais para manter o vício.
O pior é que sob o efeito do álcool o corpo e a mente se esmorecem e decaem em seu ritmo de atividade normal, logo o sono e a preguiça imperam.
Passam a ser frequentes as faltas, os defeitos na execução do serviço e a tão perigosa insociabilidade. “Perigosa” porque o sujeito para de dançar conforme a música, exibindo mais tendências antissociais, tornando-se objeto de desapreço diante dos colegas e superiores e possível alvo de vinganças fundamentadas ou gratuitas.
É necessário estar-se sóbrio para vencer a ébria luta pela vida.
A mulher viu-se obrigada a tomar o leme daquele barco chamado família e reparar os defeitos que perigavam, dia menos dia, a levá-lo para debaixo d’água. Foram várias as manhas e sutilezas usadas por essa dona de casa para preservar o lar do desastre maior.
Era, porém, dependente da estrutura do casamento. Tinha certeza que a ideia de separação deveria ser combatida a todo custo.
Como resultado da criação que teve de seus pais, mantinha postura oposta à praticidade que o divórcio pudesse acenar para a crise familiar. Insistiria em arranjar meio diverso para pôr término às dificuldades assolavam sua vida conjugal.
Indiferente aos seus trinta e oito anos, o que a tornava contemporânea da revolução sexual, da luta pela emancipação feminina, que, entre outros benefícios, favoreceu a implantação do divórcio, a Sra. Paliza estava muito longe de acreditar que pais separados trouxessem benéfica contribuição para a formação humana e de valores de seus filhos.
Contrária à tendência da divisão de corpos para solucionar incompatibilidade de gênero, ela intuía que seguir ao lado do marido, ao mesmo tempo em que juntava as suas forças para manter em linha reta o leme do barco, seria capaz de mudar a realidade que naquele momento se apresentava em forma de caos.
Endrondina conseguiu manter o marido ao seu lado. Não por chantagem emocional, servilismo, mas através da compreensão, de não se fazer de vítima e de compreender mais do que necessita ser compreendida.
A Sra. Paliza a princípio se impôs diante do alcoólatra e tomou as rédeas de vida do sujeito, como bem sabe fazer os pais cônscios de seu papel de esclarecedores face ao imprudente caminho no qual o filho pretende se embrenhar.
O marido, por fim, notou o papel ridículo que desempenhava diante dos amigos de copo, frustrando a imagem que o havia caracterizado desde os tempos que ajudava os parentes no Estado de Mato Grosso do Sul.
E reconheceu os esforços que a mulher despendia para manter a chama do respeito e dignidade na família, de tolerar sua presença junto aos filhos, procurando fortalecer neles a figura de referência que somente o pai dedicado e com senso crítico pode ser.
Ele viu na esposa a amiga, e não uma moralista.
A fagulha reacendeu a chama do desejo de transformar sonho em realidade.
Paulo foi tomado novamente pelas lembranças que o motivou a vir para São Paulo, de se tornar pessoa respeitada, sustentar a família com o suor de seu rosto e devoção ao trabalho.
Queria ter o próprio negócio e educar os filhos para que eles fossem mais além do que ele pôde por causa da escolaridade limitada.
Ia retomando a consciência de sua idiotia. Muito lhe tocou a visão que teve de da esposa. Não como matrona, carrasca, megera incompreensível, mas companheira que tendo podido abandoná-lo há tempo na sarjeta para que o vira-lata lambesse sua boca, persistia ao seu lado, com paciência de Jó e perseverança dos cristãos da época do império romano.
Sobreveio o dia em que deu um basta ao caos interior e se lançou ao trabalho como águia faminta à presa.
Os olhos, antes murchos, apagados, típicos dos desolados, dos marinheiros que acreditam que nunca mais verão a terra firme, de um feito se iluminaram.
O casal se rejuvenesceu. Uniram-se ainda mais. A voracidade pela fortuna se reavivou. O homem era o trabalho em pessoa.
Sábado, domingo e feriados raramente o retiravam da tarefa de labutar na obra que estivesse se dedicando. Xingasse sua mãe, produziria menos rancor do que se atrevessem a convidá-lo para dar-se ao luxo de tirar dia de folga, de colocar o lazer na agenda.
À época da volta do apetite pelo serviço, estava desempregado. Pela degradante situação a que chegou, o fiel engenheiro havia sido obrigado a dispensá-lo da construtora, temendo vê-lo morto num acidente de trabalho por excesso de álcool, por briga com os companheiros ou esgotamento mental.
Paulo teve que ir sozinho à luta. O destino soprou a sugestão de ser seu próprio patrão e ele não fugiu à convocação.
Um servicinho aqui. Outro ali. Mais um acolá. Pronto! O empreendedor despertou.
Três anos depois, em 1990, passou a ser tão solicitado para serviços de pequeno e médio porte, como reparos, modificação ou construção de residências, que chegou o momento de ele não ser suficiente para dar conta de atender aos pedidos.
Como havia duas ou três obras simultâneas, ele contratou empregados para tocar uma empreiteira clandestina uma vez que não tinha registro no CREA nem consciência que podia contratar um engenheiro como responsável técnico.
Embora estivesse em dia com ISS, teve lá tropeços em gerenciar questões trabalhistas. Somada aos impostos, viu que seria impossível garantir todos os direitos dos “empregados”, os quais no início entraram como “convidados” na empreiteira. Nada tão importante. Tropeços típicos de empreendedor de primeira viagem. Ao se estabilizar na profissão Paulo teria condições para lidar com os aspectos jurídicos, deixando de estar na ilegalidade.
Desta maneira, passou a ser uma espécie de supervisor, visitando as obras e orientando o rumo que os subordinados deveriam tomar para a adequada execução do serviço.
Nesse meio tempo, livrou-se do aluguel. Comprou terreno num bairro pobre e, porém, novo de São José, o Morumbi. O asfalto não havia chegado. O pior inconveniente era lutar contra a poeira que reinava vinte e quatro horas, tornando a respiração difícil e provocando sofrimento nos pulmões de crianças e idosos. Poeira que dava folga apenas para o lamaçal nos dias chuvosos.
Como esquecer o enxame de baratas, ratos, mosquitos e pernilongos que os visitavam durante as noites quentes de verão? Os dois primeiros para comerem os mantimentos, os segundos para chuparem o sangue.
Como seu serviço de “inspeção” das obras terminava em torno das sete horas da noite, era das 20 horas às 23 horas que dava cabo de serviços leves na construção de sua residência. O bruto ficava para sábado, domingo e feriado. Para as lajes, os telhados, Paulo teve que contar com a ajuda de amigos e pagar hora extra para seus empregados.
No restante, ele não precisou mais do que uma mãozinha dos filhos, quando muito. Construiu sozinho o novo lar.
As três crianças frequentavam a escola. Os dois meninos foram se engajando no ofício paterno e, em pouco tempo, aprenderam os macetes da profissão. Os filhos, já rapazes, ajudaram o pai na construção do próprio lar, local mais que ideal estagiar que na construção civil.
Hoje, dos fantasmas que perseguiram a família Paliza – como as privações, as situações de desespero e a falta do que comer em momentos críticos –, restam somente fotos, provas vivas do passado sofrido, guardadas nos álbuns pela dona Endrondina ou colocadas nos quadros em cima da estante e cômoda.
No mais, a situação mudou e para melhor. A prefeitura de São José dos Campos deixou de blábláblá e asfaltou o Jardim Morumbi.
Para os Paliza que chegaram com a roupa do corpo na Capital do Vale, é um registro de vitória ter a casa num bairro recém-asfaltado.
Casa de três quartos, sala, cozinha, duas amplas áreas, que servem de garagem. Três carros, o mais “velho” é de 1994, linha telefônica, conta corrente e poupanças.
Uma vida de classe trabalhadora de primeiro mundo, que no solo brasileiro por vezes passa por rica, dada à atual distribuição de renda. Não é difícil o IBGE lhe confundir com a classe média.
Dona Endrondina ainda conta com edícula onde exerce seu negócio de costura e pequenos consertos “femininos” como pedicura, manicura. Ela é mulher versátil.
A opulência da família Paliza se expande. Contam, a algumas quadras dali, com a espaçosa propriedade, cujo terreno está em torno de cinco vezes a área desta casa.
O terreno obedece a uma divisão. Na primeira parte, o Sr. Paulo levantou toda estrutura básica para o casarão, inclusive aonde vem morando – um pouco para não deixar que a casa fique abandonada durante a noite, e outro tanto por pirraça, ao ter, em janeiro, brigado com a esposa.
Restam pequenos detalhes de acabamento para se completar a obra.
Na segunda parte, compreende o grande galpão, no qual ele pretende abrir loja de materiais de construção.
Estudiosos sabem que a melhora na condição de subsistência, o aumento da riqueza pessoal, força o sujeito a uma nova consciência. Nela se verá numa posição social privilegiada e passará a ter comportamentos, atitudes e pensamentos que mais se aproximem dos da classe dominante.
Dona Endrondina e o Sr. Paliza, gente humilde em sua origem cultural, por limitações específicas, se reservam ao acesso das vantagens dos bens materiais.
Aprenderam a ganhar e administrar o dinheiro, transformando-o em bens imóveis e nos apetrechos que enfeitam a vida daqueles que se encaixam no conceito de classe média.
Garantidos os meios de subsistência e, devido à coerência paterna e materna de encaminhar os filhos a profissões que em vez de reduzir o poder aquisitivo o façam aumentar, será mais fácil compreender algo do caráter dos três adolescentes.
É natural que a família que alcançou posição privilegiada, pelo esforço dos braços, dedicação ao serviço e devoção à economia doméstica deseja que os filhos passem menos apuros, que a formação escolar os ajude a ter acesso a profissões menos braçais, recheado de oportunidades no mercado de trabalho e reconhecimento.
Dos três jovens, nos centremos na Perla, pois é uma das protagonistas desta história.
A menina, por ser a primogênita e única mulher entre os três filhos, recebeu atenção especial dos pais, sem precisar desencadear crises de ciúmes com os demais irmãos. Os pais foram hábeis administradores no amor que forneceram às crias.
Perla tomou o pai como ideal de homem e suas ações as mais belas. Um sujeito que pelo esforço retirou a família da condição de humilde caipira para garantir lugar mais confortável.
Quanta admiração devotou ao patriarca por vê-lo sair das trevas do vício, da baixaria, da falta de rumo que o culto ao álcool pode arrastar.
Tinha orgulho de ver o pai vestir a casta batina do trabalho, do espírito do “fazer acontecer”. Exemplo dos que se tornam bem-sucedidos por pegar na pá e na enxada e construir sua vida em cima de serviços e mais serviços prestados.
A consideração que nutria pelo Sr. Paulo não eliminava os naturais conflitos entre pais e filhos.
Perla sabia dos defeitos paternos.
Houve situações que sentiu vergonha dele, quando se misturou com universitários, dentre da limitada roda de amigos, pouco antes de concluir o ensino médio.
Cismou em enxergar na família carência de sofisticação, de cultural geral. Passava por sua cabeça que a carência cultural do seio familiar havia favorecido o desempenho razoável que a caracterizou sua trajetória da educação escolar.
Da vivência na escola pública, resultaram histórico mediano e pouco trato com os livros. Mais dentro dela havia a necessidade de mudar essa realidade, de trazer mais acesso a informação para si e para os pais.
No entanto, o que via de errado nos pais nunca ofuscava o orgulho que sentia por tê-los como referência.
Assim que pôde, Perla assinou revistas e as deixava em lugares estratégicos, expondo-as de modo sutil aos pais. Passaram a ler, tanto quanto conseguem ler as pessoas que mal completaram o ensino fundamental. Mas o esforço é o que contava.
Na adolescência, Perla teve sonhos nos quais se imaginava atingir situação que estava acima de sua realidade.
Não só tinha um sonho como o compartilhava com a amiga Dora, pessoa em que mais confiava, depois da mãe. Talvez a amiga porque ouvia suas fantasias e planos.
Perla queria casar-se com um “doutor”. Fazer parte da classe média. Queria morar num dos bairros chiques da capital do vale. Sem falsa modéstia, queria residir no Bosque Imperial, condomínio fechado valorizado.
Para começo de casamento, quem sabe, toleraria um apartamento no centro da cidade até que pudesse comprar o magnífico lote, construir a casa monumental.
Seja que moradia fosse. Importava pouco que o futuro noivo fosse mais ou menos de seu porte financeiro. O imperativo é que fosse doutor. Tivesse visão de crescer, de evoluir, subir na vida e não mofar num emprego mediano. Era o que importava para ela.
Quando a jovem fala em doutor em hipótese alguma se limita aos pertencentes à área médica ou à advocacia ou que possuem doutorado.
Perla almeja no futuro namorado o diploma superior, o título acadêmico que pudesse apresentar às colegas, às vizinhas, à família e à própria vaidade.
Que legal seria para ela responder a pergunta “o que seu namorado faz?” com a resposta “ele é um administrador de Empresas ou um ‘humilde dentista”, por exemplo.
Um doutor na família a alçaria da obscuridade cultural, arrancando-a do exclusivo contato com os “rústicos”, os analfabetos funcionais, para transportá-la ao glamour da burguesia diplomada.
Ela teria alcançado o direito de ir a esses clubes ou restaurantes, que embora todos possam entrar, ela via a predominância, o monopólio, dos ditos burgueses de primeira linha. Advogados, jornalistas, educadores, todos que cursaram uma universidade e acharam um galho apropriado para o amor-próprio.
Vale considerar que os murmúrios e desabafos de Perla Paliza não são tão frios como possam as frases escritas acima parecer.
Ela tem 19 anos. O cálculo ainda perde para a inocência, companheira dos jovens. O fato é que ela sonha, como sonhador, a certa altura as exaustivas maquinações chegam parecer doentias.
Mas não são.
Perla Paliza reúne qualidades. Mantém-se fiel aos rituais da igreja católica.
A essência vem de seu interior, que é solidário, tímido, obscuro e receoso, embora se apresente armada com rígida máscara, enfeitada por nariz empinado, lábios cerrados que afugenta os estranhos.
Para os desconhecidos, para as pessoas que não são de sua convivência, permanece a fisionomia intimista, mal-encarada, mal-humorada.
A altivez é fruto da reserva e insegurança.
Ainda que Perla critique, a cafonice paterna algumas vezes aparece nela.
Luta contra, mas quando abre a guarda se vê agindo da forma que foi criada.
O que é natural, mas que para pessoas como Perla acaba gerando mal estar por querer ser diferente do que acredita caipirismo, pensamento mediano, estupidez, submissão. É a primeira luta que trata a pessoa que quer pertencer classe social diferente a que sorveu os primeiros ensinamentos, as primeiras ideias.
Se juntar a ambição ao redemoinho de contestação que paira na cabeça do jovem, será possível entender por que Perla identifica caipira como os habituados a não ler nas entrelinhas, a não ter visão crítica do mundo que os mantêm vivos.
Paliza teve criação sadia e regular.
Quando atravessou o duro período da crise familiar, contava entre onze e doze anos.
Se os pais nunca foram cópia de par romântico, xingamentos e humilhações também não faziam parte da rotina. Assim, não houve maiores efeitos perturbadores para Perla durante o período que o pai se debateu com o álcool. No máximo, caso fosse criança mimada, teria sentido falta de mimos como iogurtes e passeios ao cinema no período de aperto financeiro.
O pai a mimou. Primeiro porque raro os pais deixarem de mimar as meninas quando as encaram como princesinhas. Tentava dar do bom e do melhor. Impedia que ela andasse de ônibus. Sempre a levava e trazia de carro da escola, dos passeios, das festinhas com as amigas.
Muito provável que a demasiada proteção que conferiu à filha, esquivando-a de pisar sequer num cascalho, com medo de que ferisse os pés delicados, tenha contribuído para que despertasse na menina uma inusitada aversão, uma incomum insegurança diante de estranhos.
Insegurança esta sem registros nos consultórios de terapia.
A virgindade à beira dos vinte anos se deve a tal proteção.
Se for esperado que a juventude diante da mais severa proteção, da tentativa de impedir transas eventuais, que se estimule a driblar as imposições e ir à caça das experiências, a proteção do pai de Perla tinha outro enfoque.
Permitia o completo domínio do pai sobre a filha. Que a menina estivesse no Japão e ele, confinado numa das celas de Alcatras. Ainda assim, o Sr. Paulo teria certeza dos atos da filha, por contar com a completa inabilidade social na menina.
Por ser a mais velha, foi a primeira que o pai ensinou a andar de carro. Adquiriu a CNH.
Que prazer, indescritível, sentiu essa jovem nas vezes que levava seus familiares a esta ou aquela lanchonete, nas noites de sábado, guiando o carro do pai.
Ela tão imponente, beicinho e tudo, narizinho arrebitado, mãos grudadas no volante e olhinhos atentos ao trânsito e nos espelhos interno e externo do veículo. Nem faltava o friozinho na barriga que aparece nos momentos divinos da vida.
Passeavam pela José Longo, Nelson D’Ávila. Ah, 9 de Julho era demais. Competia em futilidade e arrogância com os chamados boyzinhos da capital do Vale.
Com aquele carro bonito em suas mãos, ela achava que fazia inveja aos pedestres, maciçamente traduzidos por trabalhadores pertencentes aos bairros carentes da cidade, que por ali andavam em suas rotineiras idas ou vindas do emprego.
Circulava nos lugares mais chiques da cidade de São José dos Campos. E quem ousaria dizer que ela é do Morumbi, de família humilde? Se Perla pudesse exprimir suas sensações, ela diria que a riqueza iguala os homens, ah, se iguala.
A cem metros do campus da UEP, embora atenta ao volante, Perla presta atenção na conversa com a amiga.
E, como estava na condição de solteira e desimpedida, perguntou a Dora o que havia achado do seu professor de Espanhol.
Dora, bem arranjada com um namorado, estudante de Educação Artística, um pouco por ter se impressionado com o jornalista, outro tanto por adivinhar o natural interesse da amiga, não se fez de rogada.
_ Um gatinho... Miau-miau!
_ Estou falando sério.
_ Eu também. Ele é muito simpático, gentil...
_ É, isso é.
_ Quem sabe! – a essa estocada Perla reagiu, enrubescendo. Acanhamentos duma tímida solteira à procura, diante de um possível parceiro de acordo com seu imaginário.
_ Eu não quis dizer isto.
_ Nem precisa. É uma coisa natural, minha amiga. Você está sem ninguém, e se pintar um partido como aquele, por que vai dispensar? O que não pode é fissurar, mas se vier, tem que agarrar com as duas mãos.
_ Você, hein!
_ Mas, cá entre nós, ele não é um pouco teu ideal? Universitário, formado pela UEP, uma universidade de renome, é educado. Um jornalista. Nada parecido com os garotos lá da Vila.
Nesta frase há uma pequena ideia do quanto a Dora conhece a ambição de Perla Paliza. Era a de “fisgar um universitário ou ‘doutor’ nota dez”, segundo as palavras de Dora.
O Escort no qual seguem as duas amigas passou a ser de propriedade de Perla após tirar a carta de motorista, no ano passado.
O carro veio em função de ela ter começado a trabalhar. Vendo que seria desumano forçar a criança ir de ônibus para o local de serviço, que fica meio fora de mão para quem está a pé, o pai resolveu emprestar o carro nos dias que estivesse trabalhando.
E o emprego?
Por sua influência de mestre-de-obras, conseguiu engajar a filha no posto de gasolina Boa Viagem, através do ex-cliente, atualmente muito seu amigo. Num espaço de tempo de dez meses de permanência no serviço, Perla proporia comprar o carro, pagando em “suaves prestações”, de acordo com o salário.
Tendo o ordenado aumentado, convenceu o pai a lhe vender. Ele concordou.
“Assim que tem que ser. Quando se paga por algo, se aprende a dar valor”, foi o desabafo interior do Sr. Paulo, a fim de espanar qualquer cisco de avareza.
A filha, zelosa e compromissada, ao receber o salário, paga ao pai o que deve, em forma de parcelas mensais.
Faz sobrar uns trocadinhos para poder presentear os familiares com roupas ou passeios a lanchonetes no sábado à noite, ou ajudar na aquisição de eventuais suprimentos. Nunca, claro, negligenciando a própria vaidade.
Mesmo sendo educada nos rigores da poupança, do investimento, é jovem de menos de vinte anos. E tem seus desperdícios, gastos com os ornamentos femininos. Ela investe em si ao cuidar carinhosamente da delicada vaidade.
É mulher. Justificam-se os batons, o blush, perfumes, calcinhas sexy, belas roupas, indispensável a quem não quer ficar à margem de seu tempo, nem passar despercebida ao olhar masculino.
Além da grande meta, a de se “associar” a um parceiro que seja a representação do seu ideal, metas menores, mas não de menor urgência, congestionam sua cabecinha.
Quer abrir conta no banco, adquirir o primeiro talão de cheques e pôr as patinhas num cartão de crédito. Um pouco porque se sente meio inferior quando entra nos lugares grã-finos, e na hora de pagar a conta, passa para o garçom a grana, enquanto a maioria charmosamente exibe o gesto de assinar cheque especial ou passar o Visa.
Como se sente rústica, caipira, primata nessas ocasiões.
Que fique bem claro que se ela quisesse ser mais uma dessas menininhas que se encontram nas portas de cursinhos pré-vestibulares durante o dia, na hora do intervalo, ou enfeitando butique e sorveteria de Shoppings, ela seria.
O pai lhe ama muito e jamais recusaria em mantê-la num cursinho para disputar uma vaga numa universidade estadual, ou estudar na Univap durante, em curso de sua preferência, se ouvisse da filha que se simpatiza pelos estudos.
Perla quer ver o cão chupando manga, um vendaval pôr abaixo sua casa, tudo, menos passar horas com a bunda colada na cadeira, tendo que ouvir professores recitando frases “chaves”, matéria importante, exercício importante, teste importante, consciência importante, atividade importante.
Quer que o estudo e os estudiosos vão para a ponte que caiu, para qualquer outro lugar, menos para junto dela. Odeia estudar. O porquê dessa aversão seria complicado explicar.
É a velha história de que se todos gostassem do amarelo, o que seria do verde?
Sua aversão é tão verdadeira, tão rebelde, que nem conseguiria permanecer na escola, fingindo interesse, mesmo que os pais se lascassem para pagar a conta. Ela é uma exceção.
Recusa-se a suportar a rotina escolar por conveniência, por medo de trabalhar. Recusa-se a torrar a grana da família. Recusa-se fingir interesse pela escola e aproveitar todas as regalias da condição de estudante financiada.
Acha que trabalhando logo conseguirá atingir partes de seus sonhos: morar num dos bairros nobres, quem sabe no Jardim Esplanada, no Urbanova, no Colinas.
Sua intuição diz que está certa; que curso universitário é investimento arriscado, cujo retorno financeiro pode não ser o esperado.
O que vale para ela é a dedicação e a ambição para que possa atingir suas metas. Sabe que título acadêmico conta pouco para se tornar rico e o mundo está cheio de exemplos de pessoas bem sucedidas, tendo alcançado o segundo grau.
Para amenizar a ojeriza acadêmica, Perla tem em mente entrar, no ano que vem, na Univap e cursar Economia ou Administração de Empresas na Unitau. Tanto uma como outra profissão volta e meia chama sua atenção, arranca admiração. No mais, as duas muito bem se encaixam em seu sonhado título de “doutora”.
Por trás da máscara de indiferente e caprichosa, esconde-se pessoa sensível e solidária.
Perla é muito afetuosa. A ambição em vez de lhe deteriorar esse traço de personalidade, atirando-o na lama da vulgaridade, da brutalidade, na qual certos indivíduos se atolam quando tentam vencer as limitações econômicas e sociais, na verdade fortaleceu ainda mais sua originalidade.
A moça, embora original, tem lá suas recaídas. Suja, às vezes, os pés no lodo da mesquinhez.
Entre 14 e 15 anos, ela nutriu repulsa pela “inferioridade” do seu bairro. Sentia um sutil desprezo pela maioria dos garotos e garotas da vizinhança. Detestava as gordas, as redondinhas, proseadoras que tão bem caracterizam as vizinhas donas-de-casa. Achava aquele pessoal estúpido. As únicas amigas eram meninas selecionadas a dedo no colégio João Cursino.
Para quem conhece São José dos Campos, sabe que o João Cursino é um dos poucos colégios estaduais que são cobiçados pela classe média, a ponto de deixar que os filhos nele estudem. Posição geográfica privilegiada, localizado no centro da cidade, na José Longo, defronte à UNESP.
À época que sua mãe ia matriculá-la no ensino médio, Perla bateu o pé e foi para aquele colégio. Faria o impossível para deixar de se misturar com os vizinhos, dos quais vivia evitando estreitar relações. Decidiu não cursar o ensino médio na escola do Morumbi.
Não mediu esforços nem se importou com a trabalheira que dera ao seu pai com a obrigação de levá-la e trazer do centro da cidade para estudar.
Aos catorze anos, faria de tudo para se distanciar dos “pobres” e se aproximar dos “ricos”. Dentro do peito desta franzina menina batia a inclinação para o conforto que a classe abastada desfruta.
Buscava o que lhe desse mais prazer aos sentidos.
De todos os sentidos, eram dois os mais exigentes: a visão e a olfação.
Maravilhava-se em ver os apetrechos da classe média alta. Roupas novas, carros, casas bem localizadas. E a bela vista das regiões nobres de São José dos Campos? Nem se fala.
Quanto à olfação, significava, quando fora do Morumbi, que estava longe de respirar a maldita poeira, o cheiro nada convidativo das bostas de vaca e de cachorros que infestavam bairros mais humildes.
Gostava do centro com a mesma disposição que odiava o lugar onde morava.
Por centro da cidade, ela não considera o calçadão, a praça Afonso Pena. Detestava aquele comércio incessante, com pessoas subindo e descendo, em ritmo alucinado.
Nem passa pela cabeça dela achar graça na horrível e imunda imagem nos arredores da Igreja de São José, a matriz, e da Rodoviária Velha, com camelôs por todos os lados, apinhada de nordestinos, caipiras, vagabundos e inúmeros joões-ninguém circulando.
Aquilo lá causava lhe ódio, vertigem, um enjoo nunca imaginado por gestantes.
Seu “centro” é a Vila Adyana, com a Adhemar de Barros, a 9 de Julho, José Longo, a igreja São Dimas e adjacências.
Tolera, meio a contragosto, a João Guilhermino, e que não chegue próximo ao prédio do INSS, onde começa, sendo seu juízo, a orgia dos comerciantes e dos ávidos clientes, a torpeza dos comerciários e dos assalariados.
Lá pelos lados do CenterVale Shopping parece chiquérrimo, quanto mais quando está guiando o carro, tirando a maior onda.
Pura perda de tempo tentar lhe chamar a atenção para a Nelson D’Ávila ou Paraibuna. A primeira, em sua opinião, parece um beco de longas tripas. Pelo enxame de lojas e de carros, ambas ficam estreitas e sufocantes. Sendo a Paraibuna muito mais horrorosa que a Nelson.
Animada pelos planos futuros, Paliza motivou-se a ir além do ponto que os pais estacionaram. E queria desde logo cultuar os caprichos da classe visada. Desejava enriquecer pelo trabalho, e poder usufruir o que o berço não lhe ofereceu.
Diante desse quadro de luta e metas parece mais fácil entender por que essa agradável e delicada garota está sem uma “cara metade”, sem namorado.
Não é falta de partido.
Muitos garotos de sua idade e convívio tentam conquistá-la. O cara que ousa declarar interesse tem a infelicidade de engolir a seco um fora acompanhado de tremendo mal estar.
Com tato, Perla evita dar corda para não ter que ser “estúpida”, “insensível” com o pretendente. Para os insistentes, raramente consegue evitar que o sujeito sai frustrado quando ela diz que gostou dele como amigo e nada mais.
Perla espera que o destino lance em seu caminho um filho de boa família, um prodígio da classe média. Filho de médico, profissional de nível superior, que more num daqueles bairros de primeira linha.
Às vezes ela chora, trancada em seu quarto, atormentada pela demora que o Pai Destino insiste em trazer o tal Príncipe Encantado, o burguês Encantado. Pensa que se fosse mais flexível poderia já ter arranjado um namorado no bairro.
Tem um sujeito, filho do dono dos Supermercados Pinta Grossa, na primeira quadra à esquerda de sua casa, que é afinzão dela. Conquistou a amizade do pai, fez média com a mãe e carrega o irmão caçula para cima e para baixo. Um político em campanha eleitoral não se sairia mais empenhado.
Quer ela mais prova de amor do que vê-lo tolerar o Faustão, petrificado na poltrona da sala de estar, espremido entre as gargalhadas maternas e a caipirice paterna de contar vantagem, sacrificando à tarde de domingo?
Perla nem aí para os esforços do rapaz.
Ele é bom partido.
Logo que o bairro asfaltou, o Morumbi ficou atraente, e o supermercado de seu pai cresceu a olhos vistos, gerando boa quantia aos cofres da família.
Ele tem Pick Up 95. Viaja todos os fins de semana para o sítio da família, em Cunha.
Basta, porém, Perla estar em casa e solicitar sua presença, para ele cancelar qualquer passeio para poder regar a paquera, visto que durante a semana a coisa é brava e ele é a personificação da palavra trabalho.
O serviço o aprisiona das cinco da manhã às dez da noite, sem descanso ou hora de almoço. É comum fazer as refeições em intervalos de dez a quinze minutos, tirar rápido cochilo com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos fincados no balcão, nas raras vezes que se permite cochilar.
De repente, como das outras vezes, ela enxuga as próprias lágrimas, ergue a cabeça e fala sozinha
“seguindo as ideias da vovó, tudo de bom na vida tem seu sacrifício. Vou continuar lutando pelo que quero. Hei de achar meu par perfeito. É melhor sofrer com a espera agora do que com frustração, desilusão, por causa de escolha precipitada”.
Pela e Dora se conheceram no serviço. Trabalhavam no Boa Viagem, posto de autoestrada, localizado a cento e cinquenta metros do CenterVale shopping, na Dutra, especializado no atendimento a caminhoneiros, e, claro, aos veículos de passeio que param para reabastecer. Lá se encontram o combustível comum, nutrientes para os veículos, como restaurante para os motoristas.
É o primeiro emprego da pequena Perla, apelido pelo qual é conhecida de boa parte dos caminhoneiros. Em hipótese alguma é alucinada pelo trabalho, mas se identifica com o que serviço.
Há momento, contudo, que sente desânimo, repulsa pela posição que ocupa. Normal. Difícil encontrar um sujeito que nunca reclamou, ao menos em pensamento, de sua ocupação.
Perla é muito estimada no emprego. Quando entrou no posto ganhava tanto quanto uma empregada doméstica mal paga. Um salário e meio, para executar tarefa cuja responsabilidade ninguém no Boa Viagem queria pegar.
A cada dia tinha o risco de tomar prejuízo e receber a dolorosa notícia de que seria descontada no dia do pagamento. Era uma das duas auxiliares de Financista.
Vendo que o anjo trabalha que nem camelo e ganha que nem formiga, o destino forçou os acontecimentos. A financista titular deixou o emprego por motivos pessoais e Perla passou à condição de financista.
Dora nutriu, por dias, sentimento confuso, encontrado nas pessoas de bom coração, incapazes de fazer mal a outrem, mas que, por serem de carne e osso, e terem a dose de cobiça, ceder à inveja.
Sentiu-se magoada e passada para trás. Ela havia sido contratada há vários meses e a amiga é quem foi promovida. Não ganhava tão pouco quanto Paliza. O rendimento chega a três salários, o dobro da colega. Perla ganhava R$ 900,00.
Dora é estudante de Artes na UEP. Neste particular acreditava ter vantagem sobre Perla. E, apelando para essa “vantagem”, consegue esfriar os nervos da inveja e tocar a amizade.
Nem podia nutrir sentimentos de rivalidade para com Perla. A amizade delas é fora de série. As duas eram mais que amigas. Eram quase irmãs. Na verdade, a irmã que Paliza nunca teve.
Como é duro para uma menina não ter irmã ou prima de sua idade para trocar confidências, comentar sobre inquietações, sobre a chegada da puberdade e as transformações que modificam seu corpo e seu modo de ver a si mesma. A situação piora se a mãe não tiver traquejo suficiente para espantar os medos da filha, como é o caso de dona Endrondina.
Com a pele meio vermelha e pintada com pigmentos amarronzados, Dora acostumou-se a ser chamada pelos garotos de “enferrujada” ou “ferrugem” em vez de ruiva. Um par de olhos verdes, que de vez em quando parecem azulados. O traçado dos lábios e do formato da boca se assemelha a de uma europeia, embora seja ela da região de Piracicaba. Os cabelos loiro-castanhos e encaracolados.
Ela é magra, porém diante de sua amiga, que é mais magra ainda, passa por esbelta. Nada nela denuncia algo de excepcional, mas quando presta atenção ou encara determinada pessoa, quando sente curiosidade em vasculhar o rosto alheio, aparece em seu semblante uma luz inebriante.
A fisionomia facial assume deslumbramento quando move seus lábios e olhinhos em direção à pessoa, a qual se for homem, provável que tenha as pernas bambas durante o tempo que o olhar perdurar.
Através dessa descrição de Dora, dá para ter ideia por que Renato ficou meio embasbacado, na sala do D.A, durante a conversa sobre o curso de idioma.
Sem querer, Dora anula a amiga. Todos têm olhos para ela. Quando Perla está ao volante são uns dos raros momentos em que consegue emergir da nulidade que sente na companhia da amiga, diante de olhos ávidos dos homens, pelo menos dos interesseiros.
O traço comum entre elas, o ponto forte, é a virgindade. Como duas virgens, se entendem tão bem. Por estarem no mesmo barco, que conforto é saber que se pode contar uma com a outra para superar esta etapa.
Cada qual com sua individualidade.
Mas que alívio era poder falar abertamente da condição de “zero quilômetro” e desabafar inseguranças.
Que barra, por exemplo, ser virgem aos vinte anos quando se vive numa época que sexo é falado e exibido em todo lugar e a maioria dos jovens transam antes de pôr os pés nos dezesseis anos. Dá sensação de incompetência. Às vezes pinta baixo-astral, falta de autoconfiança. É comum pensarem: se eu fosse ‘boa’ já teria arranjado um namorado, transado.
O pior é ouvir as colegas, experientes, esbanjarem malícia nas perguntas e afirmativas. “Você não sabe o que está perdendo, é tão gostoso”. “Como! Você ainda é virgem? Você é uma raridade.”
Raro o amor-próprio que não fraqueje das pernas ao ouvir tais frases picantes, que tanto excitam os sentidos como humilha a autoestima do virgem.
Na quarta quadra depois do SESI, no Bosque dos Eucaliptos, Perla saiu da Avenida Andrômeda pela direita.
Mais um pouco, estacionou diante da casa dos pais de Dora Araújo e Silva. Lá deixou a amiga, sem entrar, mesmo ao receber o convite para que descesse e visitasse o interior da casa. Perla alegou que estava cansada, o que era verdade e a colega cessou de insistir porque se encontrava em igual estado.
Despediram-se.
Paliza pegou da direção e seguiu para o Morumbi.

Renato poderia estar bem arranjado no jornalismo joseense, se não padecesse do vírus da iniciativa.
Na qualidade de um dos alunos mais dinâmicos do jornalismo diurno da Uep, apesar das notas nos boletins deixarem a desejar, pairava na opinião geral que o rapaz teria destaque em qualquer carreira que abraçasse.
Na mente de seus mestres persistia a ideia de que teria futuro brilhante. Os mestres não estavam sendo falsos ou demasiados otimistas.
Quem visse o vulcão que não cessava de jorrar ideias, de se meter em atividades paralelas e lutar em prol de interesses que muitas vezes fugiam ao culto do egoísmo, do exibicionismo, deduziria que ele alcançaria carreira promissora, confortável posto de trabalho na imprensa de primeira linha.
Quem vê cara não vê coração, lá vai o ditado.
De fato, ele possuía muitas habilidades que o destacava.
O problema foi sonhar mais com situações grandiosas e se dedicar menos em procurar colocação que pudesse garantir mercado de trabalho ao colocar grau.
Na época de movimento estudantil, não correu atrás de atividades que trouxessem benefícios imediatos. Por exemplo, investir em lobby com pessoas importantes, como diretores, para que conseguisse assegurar cargo logo que pegasse o canudo.
Com sua influência política, não usou o DCE como passaporte para entrar em partido oportunista, e ganhar poder de barganha lá dentro, de maneira que consolidasse fortes laços. Se tivesse feito, bem provável que fisgasse vaga para deputado ou cargo de assessor sabe lá de quem.
Sua deficiência vendava os olhos, atava as mãos, e o rapaz trabalhava em prol de interesses coletivos.
Tinha inabilidade de visualizar o lucro rápido, que servisse a seus interesses.
Antes, preferia investir em atividades coletivas, buscar melhoras para mais gente.
Nada é por acaso.
Atitudes são resultados de uma visão de vida, de traços de personalidade.
Se aos olhos de muitas pessoas são ações tolas, na opinião de Renato era o que deveria ser feito.
Gostava de suas ações, sentindo prazer por elas e desesperando-se caso fosse privado de agir como queria.
Colaborador em boa parte das revistas que a cada ano pipocava no campus, começou a ser conhecido da comunidade acadêmica local.
Seus artigos eram tão precisos, fulminantes, duma estética linguística impecável e munida de poder de persuasão que chegava a causar inveja a muitos caciques dentro do campus, fossem eles professores ou meros funcionários mais politizados.
A fama veio rápida.
Logo passou a ter influência como ‘meio’ líder.
O destino deu passo à frente, e veio a ser líder completo, com cargo, quando sugeriram que ele passasse a tomar conta da coordenadoria de relações públicas do C. A de Jornalismo.
Na prática, era quem ia lobiar com os chefes de departamento, diretores da faculdade, em prol de benefícios para a entidade.
Primeiro, achou prazeroso. Segundo, realizou um bom serviço à frente do centro acadêmico, no sentido de conquistar a estima de estudantes chaves.
Seu desempenho foi suficiente para obter a posição de coordenador do DCE – Diretório Central dos Estudantes –, órgão estudantil representante de todos os C.As e D.As que compõem os 22 campi da UEP, abrangendo vinte e uma cidades do interior paulista mais a capital.
Ainda na época como dirigente do C.A, era temido, ao lado de mais quatro alunos “problemas”.
O Diretor da Faculdade de Publicidade e Jornalismo, o reitor e mais meia dúzia de chefes de departamentos se sentiam incomodados com sua presença tanto quanto desagradaria uma pedra no sapato.
Que mania importuna de questionar as irregularidades no campus. Que petulância em cobrar as velhas promessas de campanha que reitores e diretores, logo que chegavam ao cargo que pleitearam, por um passe de mágica, esqueciam que fizeram. Quem ele pensava que era para infernizar os pró-reitores, diretores técnicos?
Odiado até nos sonhos pela dona da cantina porque de vez em quando se via obrigada a negociar preços mais “acessíveis” para o self-service, melhorar a boia do bandejão para beneficiar os alunos mais carentes.
Renato percebeu que a fala de que no ensino público superior brasileiro só estuda filho de marajá era balela, que era fácil encontrar bem mais do que meia dúzia de teimosos universitários paupérrimos que levam os estudos com grandes sacrifícios.
Notou o profundo desgosto da proprietária ao ouvir frases da boca de alunos como: “Puxa, se o restaurante fosse subsidiado” ou, o que é pior, “isto aqui é um roubo.”
Renato era mal visto – ou tratado com reserva – pelos donos da copiadora (na linguagem estudantil, Xerox) quando na defesa de reivindicações dos universitários que queriam mais agilidade na fila, bom atendimento e redução do preço da cópia.
Dado o prestígio oratório e de excelente articulista, era comum que tanto as entidades locais como as de quatro ou cinco campi, pertencentes a UEP, tratassem de agradar o estudante, para conservá-lo a seu lado.
Os líderes estudantis do PCR (Partido Comunista Radical), tendência partidária de esquerda que reina em alguns campi da UEP, destaque no maior deles, o de Bauru, e que fazem oposição ferrenha ao DCE, mesmo eles, roxos rivais, mantinham um não sei quê de respeito pela pessoa de Renato, tipo de respeito que é de praxe o bom político nutrir em relação a uma pessoa carismática.
No caso dos rivais do campus da capital do Vale, qualquer manifestação de solidariedade deles ao Renato vinha da certeza de que contar com seu “voto”, seu a apoio, significava 90% de êxito na aprovação de toda proposta que dependesse da decisão das entidades locais.
Por ser Renato desses jovens que se preocupam mais com a promoção de um ideal do que o próprio engajamento profissional é mais fácil sentir as ferroadas da miséria na carne.
Neste momento, faltando uma semana para colar grau, possui incerteza de oportunidade de emprego.
Em vez disso, o que consome sua dedicação, seu tempo, que suga as forças, é a necessidade de lançar no mercado revista que há mais de quatro meses vem idealizando.
Renato Sebastião de Jesus tem a raiz familiar num grupo de quatro pessoas, pai, mãe e dois irmãos. Residem na cidade de Guarulhos.
Antes de realizar a façanha de adentrar na UEP, trabalhava numa lanchonete do Aeroporto de Guarulhos, como atendente. Como boa parte dos jovens metidos em movimentos estudantis, a origem humilde da família contrasta em muito com o espírito ora empreendedor ora político.
A insuficiente instrução da família pouco serve para justificar a falta de rumo profissional desse rapaz de 27 anos.
O que pesou foi a figura do pai.
O Sr. Robson de Jesus, homem de 51 anos, teve papel secundário na educação dos filhos.
Renato o considerava acomodado, destituído de iniciativa.
Quando obteve dispensa do regimento de cavalaria, o pai agarrou-se à profissão de segurança, dando expedientes em carros fortes, agências bancárias, repartições públicas e ali permanece até os dias de hoje. Bem humorado, zeloso pela mulher e filhos, seria o pai perfeito, se a ambição de Renato fosse menos exigente.
Queria que o pai fosse mais decidido, buscasse melhores condições para a família.
Na fase de rebeldia, pouco valor dava ao fato de o pai evitar que a família passe privação. As qualidades de levar a sério o trabalho, evitar faltar e jamais ser despedido por justa do serviço significava para o filho.
Para jovens assim, tivessem tidos pais mergulhados em vícios de jogo, bebida ou mulherengo saberia dar valor ao senhor Robson.
Na opinião do pai, o conforto, ainda que modesto, estava ótimo.
Ele agradecia a boa sorte de ter saído do meio que vivera.
Desde criança, sentia-se incomodado com a extrema pobreza nos morros, de terrenos não asfaltados, de casebres, de barracos, de crianças de pés descalços no chão fétido, à beira de valetas, com esgoto a céu aberto, de marginais sem camisa e trajando bermudas coloridas e encardidas.
Embora desde rapazinho fosse asseado, prezasse pela limpeza, admite que graças à dona Mariana Sebastião da Silva teve a melhora no seu padrão de vida, ao desenvolver a certeza de que podia, através do trabalho, adquirir ambiente doméstico mais salubre e prazeroso.
Graças à dona Mariana é que também os filhos estudaram.
Da mãe, Renato herdou a cisma de querer melhorar de vida, o ar de pena diante dos considerados acomodados por ela. É triste – ela ia ensinando os filhos – ver a pessoa gastar tempo em procurar culpado por seus fracassos.
O tempo que perde daria para superar os obstáculos pelo trabalho ou estudo, para alcançar os seus desejos. Em vez disso, lamentosos, ficam na miséria, colocando ora a culpa em Deus ora no patrão.
Dona Mariana se irritava diante de pessoas que não reconheciam as próprias falhas e tentava promover esta consciência na cabeça dos filhos e marido. “A preguiça é primeira culpada pelo fracasso. Acomodar-se e culpar é o primeiro recurso que quem ganhar fácil acaba usando para justificar ter pouca iniciativa.”
Ensinava o filho o valor de ser responsável por seus atos em vez de culpar os outros por sua frustração.
A pouca instrução escolar e a ocupação de empregada doméstica e cozinheira de restaurante-lanchonete não reduzia a determinação de ver os filhos alcançarem futuro melhor.
Fez de tudo para garantir que Renato concluísse o Ensino Médio. Dali para frente não teria condições de arcar com os estudos do filho, mas incentivava a persistir na trilha da qualificação profissional.
Encerado o colegial, o jovem teve que decidir sozinho seu caminho, e nele se embrenhar, sem contar com ajuda financeira de quem quer que fosse. Durante os quatro anos de curso, foi um desses raros estudantes universitários que dependem dos próprios esforços, do serviço, para se alimentar, vestir e continuar estudando.
Se Renato puxou a mãe, João seguiu a trilha do pai.
O irmão terminou o colegial e findou os estudos de uma vez por todas. Considerava chato ter que estudar. Queria conseguir emprego como seus amigos do bairro.
Consumia boa parte do tempo dormindo, estendido na cama ou sentado junto ao portão ouvindo rádio, quando desempregado. Quando o empregado e calhasse de ter funções chatas, seguia reclamando da obrigação de trabalhar.
O irmão sonhava em ganhar na loteria ou qualquer prêmio que desse a chance de não ter que levantar cedo, ao garantir renda suficiente para casa e comida até o último de seus dias.
Em Renato, ao contrário, há indescritível e pulsante força que o arrasta à ambição.
É obsessão de querer ser algo além do que a família pôde.
Quer mergulhar numa atividade que traga como produto, como lucro, não apenas cifras, dinheiro, mas reconhecimento, valorização. Quer ter nome famoso, respeitável. Daqueles que se comenta, que tece inúmeros tititis elogiosos sem nunca ter tido contato.
Em parte este sonho de ingênua grandeza que habita nele muito se deve ao período em que trabalhou no aeroporto internacional.
Antes de pôr os pés lá, enfurnado no bairro pobre, afastado, onde muitas famílias não tinham o d mínimo necessário para viverem decentemente, ele ficaria deslumbrado diante daquele mundo que achou “maravilhoso”, sofisticado.
Novelas e filmes, com as ilusões de praxe, o encantaram até os 18 anos.
Na época, semelhante ao pai, após servir no Exército, desejou superar sua origem.
Entrou no mundo da literatura e história.
Dali em diante, nem as belas atrizes, com as sofisticadas roupas decotadas e as olhadelas sensuais, tampouco os mais emocionantes enredos o prenderam a qualquer telenovela ou seriado de TV. Filmes muito raramente.
Lia, lia compulsivamente.
Após concluir o período do quartel, e devido à camaradagem – para alguns, o popular pistolão – conseguiu vaga no aeroporto, pouco antes de completar vinte anos.
Que maravilha.
Ficou boquiaberto com aquele ambiente sofisticado. Por mais analítico e socialista que a literatura e a história possam ter tornado, não conseguira ficar impassível à suntuosidade.
Renato viveu à margem da riqueza, do luxo, do requinte da burguesa, das maravilhas que a tecnologia e arquitetura são capazes de oferecer.
Desconhecia que guardava dentro de si a tendência para o conforto. Quando este se apresentou ao seu alcance, não conseguiu controlar o impulso e se deslumbrou.
Perturbou-se face ao luxo que reina escancarado no aeroporto internacional duma megalópole como São Paulo.
Se este jovem sonhador nada sentisse ao pôr os pés pela primeira vez no aeroporto, diria um capitalista radical, talvez estivesse fadado a permanecer mais tempo na semifavela onde morava.
Diria que sua ambição não iria além das que têm os ladrões de galinhas, os que assaltam os cegos em porta de igreja, os que se conformam com o salário mínimo e os benefícios da Previdência Social.
Seria forte prova de indiferença em relação ao conforto e bem-estar, se suas opiniões se mantivessem as mesmas diante daquela visão.
Sebastião se vislumbrou durante mais de um mês diante de todo o luxo, sendo seu assombro comparado em intensidade ao dos três Reis Magos quando viram o recém-nascido Rei dos reis numa manjedoura.
No exemplo de Renato, o assombro vinha pela suntuosidade; diferente da situação envolvendo a manjedoura, exemplo máximo de simplicidade e desprendimento.
Sebastião viu, ouviu e, por vezes, serviu pessoas importantíssimas, umas anônimas, outras conhecidíssimas do público. Eram cantores, atores, escritores, jornalistas e atletas que não acabavam mais. Tremia que nem vara verde nos primeiros contatos.
Ora, uma coisa é criticar o sistema dentro de quatro paredes, isolado do mundo, muitas vezes numa casa de periferia, outra é estar diante das pessoas que imperam, que são perseguidas pelos fãs, que nos fazem sentir frio na barriga na terrível dúvida se devemos perguntar ou não: “você não é?”
Os dois anos e meio que passou no aeroporto forneceram o visto de entrada na turma daqueles que têm como meta fazer parte da classe média alta.
Se o destino não desse uma de estraga-prazeres, faria de tudo para alcançar a classe alta, nem que tivesse de mover montanhas ou atravessar o mar a pé, seguindo o exemplo de Moisés e seu povo.
Pisou em solo uepiano, tímido e deslocado como qualquer pobre que de uma hora para outra passa a dividir o cotidiano dos filhos da classe média alta, pelo menos sob alguns aspectos.
Teve forças suficientes para sorrir e começar sua “ambientação”. Registrou o maior número de comportamentos e atitudes pertinentes àquele seleto público.
Queria compreender seus anseios, esperanças e conflitos. Não que fosse fazer um compêndio sobre a psicologia dos filhos bem-criados.
Acreditava que compreendendo o novo ambiente nele poderia se inserir sem causar estrondo, sem se parecer aberração, um pássaro longe do ninho.
Em Guarulhos, havia se filiado ao PT, e contribuído com o que lhe coube nos últimos meses que antecederam as eleições de 1989. Foi a primeira experiência em política partidária.
Lançou-se de corpo e alma na ideologia socialista, e nunca descansava.
Ora, estava lendo Marx, rosnando as máximas de Proudon, vociferando pensamentos contra a ditadura brasileira, findada em 1985, com as eleições diretas, ora se metia nas intrigas ou nos bate-bocas quilométricos das facções internas do partido.
Quando não estava rondando porta de fábrica, farejando greve, à caça do menor conflito entre capital e trabalho.
Até chorar, chorou, quando Lula perdeu as eleições. Um choro com tal fervor, exclusivo dos ingênuos corações juvenis, nos quais sonhos de plena justiça social tão bem se acomodam ao lado do egoísmo necessário a cada ser humano.
Era um desses jovens que fazem das tripas corações para dar sua contribuição para causa humanitária.
Em São José dos Campos, não procurou o escritório do PT. De tanto se esquivar, acabou o esquecendo.
O motivo do esquecimento ele mesmo não saberia explicar com precisão. Mistura de falta de esperança e conformismo.
É que através de Machado, com o Alienista, Quincas e Brás Cubas, somado ao pessimismo de Diderot e as delicadas malvadezas de Sade, passou a ter certeza de ver no mundo que o cercava exemplos de atrozes injustiças.
Esta visão pessimista acabou por fragilizar o ideal de igualdade social.
Foi abatido no ponto mais utópico, mais quimérico, em que ele acreditava que todos os homens fossem iguais.
A influência do fundador da Academia Brasileira de Letras, somada a de George Orwell, com seu Grande Irmão manipulando vidas de modo tirano, no 1984, foram responsáveis pelo dissabor socialista do rapaz.
O coração virgem de misantropia não se metamorfoseia da noite para o dia em mente apática. Essa sensibilidade explica a atração que, já no primeiro ano de faculdade, o movimento estudantil exerceu sobre Renato.
Às vésperas das eleições para nova diretoria executiva do C.A da FPJ (Faculdade de Publicidade e Jornalismo), mostrou-se empolgado ao avistar os cartazes chamativos nos corredores das salas de aula, na cantina e no departamento de Jornalismo.
Convidaram os alunos a participarem do processo eleitoral e formarem chapas para concorrer.
A gota d’água foi quando quatro dos alunos que deixariam o C.A depois de 5 de outubro, dali a dois meses, quando se saberia a nova diretoria eleita, adentraram na sala do primeiro ano de jornalismo diurno, na qual estava Renato, e, esbanjando habilidosa oratória, comunicaram o fato de que até o momento não havia sequer uma chapa inscrita.
Argumentavam que, como as coisas estavam indo, não haveria ninguém para concorrer e que a entidade estudantil poderia fechar por falta de pessoas que a conduzissem.
Lançando mão de apelo emotivo, disseram que os calouros são os mais indicados para lá estarem. São novos, têm disposição e não estão tão sobrecarregados de tarefas como os veteranos do terceiro e quarto anos, debatendo-se com seus projetos de pesquisa e monografia.
Os veteranos saíram da sala.
Houve pequeno tumulto, tão próprio de aula interrompida, mas que aos poucos voltaria ao normal. Devido ao mencionado precoce prestígio de Renato por seus escritos nas revistas, foi fácil que a turma insistisse para que ele tomasse à frente.
Dentro de Renato avolumou-se a vontade que o impelia para tomar partido da situação e contribuir de alguma forma, nem que se tratasse de se candidatar a um cargo de colaborador.
Na sala havia mais três estudantes que partilharam do surto de entusiasmo.
Dez minutos do encerramento da aula, Renato Sebastião de Jesus, Rogério Barbosa Silvério, Sandra Mathias e Maria das Dores Pinel estavam convictos de que deveriam procurar os veteranos e saber de uma vez por todas no que consiste o centro acadêmico e como se faz para participar ativamente, concorrer a um cargo.
Vinte dias depois, os quatro calouros se juntaram a mais cinco, pois o número para formar a chapa requeria nove pessoas.
Apesar da vontade, eles estavam tão desafinados com os requisitos e manhas para se combater no M.E. (Movimento Estudantil) quanto o cidadão comum que é recrutado duma hora para outra, em praça pública, se filiar a um partido político.
Estavam semelhantes aos voluntários dos guerreiros cossacos, narrados por Gogol, quando iam combater os polacos e seus aliados. Tanto para aqueles quanto para os nove integrantes da chapa se aprende as regras do jogo jogando.
Emoções novas, fortes e às vezes constrangedoras tomaram os nervos e sentidos dos novatos.
Para se anunciar como chapa às eleições do Centro Acadêmico 7 de Setembro, divulgar os projetos de “governo”, as famosas propostas, tiveram que entrar nas salas.
Interromperam aulas.
Tornaram-se o foco da atenção durante vários minutos.
Minutos estes insuficientes para dizer tudo que os corações dos jovens, metidos na causa social, costumam forçar as bocas despejarem em torno de assuntos simples.
Era visível que não estavam habituados ao manejo das massas.
De todos, Renato, se não era o que tinha mais violência interior, quem mais sofria e se empolgava, como fazem as pessoas na defesa duma ideia, duma religião ou crença que acreditam ser a razão de viver, era, com certeza, quem mais experimentava novas emoções.
Como fingir indiferença ao livre trânsito que passou a ter entre os alunos? Como negar a intimidade que adquiriu com os “ricos”?
Como esconder o brilho nos olhos de alguns quando lhe viam passar? Como camuflar o prazer indescritível que o invadia quando recebia cumprimentos de pessoas com as quais não tinha qualquer relação?
Renato se sentia bem diante da condição de famoso. Essa condição o protegia da sensação de zé-ninguém recém-chegado à nata da pirâmide social que teve meses antes.
Em poucas palavras, o prestígio era escudo atrás do qual podia sufocar seu sentimento de inferioridade no seio da classe que tomava contato pela primeira vez.
A chapa tinha dois veteranos, dos nove participantes. Renato, no primeiro ano, se acomodou na coordenadoria de relações públicas.
No segundo ano, empolgado, disputava a de coordenador geral, espécie de presidente, termo maquiado, empregado em vários C.As e D.As que se mostram eriçados ao menor contato com o presidencialismo. Defendem tendência menos tradicional.
Como foi possível a Sebastião disputar o cargo de direção do movimento estudantil duma importante faculdade, como é a FPJ do campus da UEP em São José dos Campos, se em toda a sua vida nunca teve experiência na política estudantil?
É comum que aquilo que se aprende jamais se esquece. Com Renato não seria diferente.
A experiência política obtida nas reuniões, nas picuinhas e discussões quando ainda era militante esquerdista, somada àquela adquirida na persuasão de indecisos, poucos dias antes das eleições para presidente da república, possibilitaram apanhar o traquejo, o gingado e a autoconfiança, atributos tão necessários aos que se metem em pleitos eleitorais.
Em parte por que boa parte dos estudantes pouco valor dava para o movimento estudantil. Fosse por considerá-lo perda de tempo, coisa de quem quer desculpa para deixar de cumprir suas obrigações com o conteúdo; fosse por que daria muito trabalho em troco de nenhuma vantagem.
Seria fácil se destacar dos que têm as necessidades básicas satisfeitas sem esforço, o sujeito que conta com a experiência de lutar pelo autossustento.
Essa experiência fornecia a coragem para não se conformar com o ambiente hostil. A coragem dentro de Renato por sua vez gerava energia para transformar esse ambiente.
Como mais uma justificativa para a maioria dos estudantes evitar ao movimento estudantil é que os benefícios que o este podia gerar já era assegurado pelo investimento que os pais mensalmente faziam ao arcar as despesas para garantir o sossego para se dedicar aos estudos.
Enquanto Renato representava a minoria paupérrima.
Na prática e sem muito idealismo, os companheiros viram nele um boneco oportuno para ficar na linha de frente, levando paulada sem largar o osso.
Ao contrário deles, ele teria mais resistência, fruto da origem humilde, visto que sua vida era uma luta das bravas para se manter longe de casa.
A convicção nas palavras, nas propostas e o gritante carisma mostravam que ele saberia, se não se esquivar de todas, no mínimo não se deixar abater pelas críticas venenosas, pelas traições e conspirações normais em qualquer campo onde reinam conflitos de interesses, onde os homens lutam pelo poder.
No fim do segundo ano do curso, era uma barra dar conta das atividades extraclasse e marcar presença nas aulas espalhadas pelo período diurno.
Vivia dividido entre a coordenadoria geral do C.A e a colaboração para jornais e revistas.
Ser freelance rendia muito pouco. Dava para comer e manter o aluguel do pensionato sem que ele precisasse desviar dinheiro das carteirinhas ou de qualquer atividade lucrativa do C.A, como muitos veteranos no assunto induziam, uns com palavras dissimuladas, outros com acusações à queima-roupa.
A honestidade que bate violentamente no peito de Sebastião é a que faz morada na consciência de todos os escrupulosos, das pessoas de boa índole.
Como a ocasião faz o ladrão, é difícil negar que talvez cedesse à falcatrua caso não tivesse seu ganha-pão e estivesse faminto, desesperado, como o desempregado que vaga pelas ruas da cidade com o classificado de emprego debaixo do braço e, após levar vários “não há vaga”, volta para casa sem perspectivas.
Mas como não é o caso, mantém a ideia fixa de não ceder à corrupção.
Não o fez em momento algum.
E se dependesse dele e mais meia dúzia, poderia se colocar a mão no fogo pela idoneidade de quem participa do movimento estudantil, com certeza de que não a queimaria.
Acreditava que se no Congresso Nacional há oportunistas e interesseiros, existem também políticos de boa conduta, que cumprem seu papel de lutar em prol do social, que, aliás, não é favor algum, visto que recebem gordo salário.
Tinha a crença de que se deve separar o joio do trigo. Punir quem pisa na bola com a causa do País e expulsar do Governo os aproveitadores, bani-los do poder.
Sua estrela, ao contrário do que acontece na maioria dos casos, não se apagou depois de ter alcançado o posto de comando do Centro Acadêmico 7 de Setembro.
Após ter criado o curso de idiomas e encabeçado uma ou outra manifestação estudantil no campus, foi indicado, em meados do segundo semestre do ano de 1993, para concorrer ao cargo de coordenador regional e articulista do diretório central dos estudantes da UEP.
O DCE localiza-se numa pequena sala no magnífico edifício no qual a reitoria se encontra na Avenida Paulista, na capital.
A indicação talvez tenha sido um pouco pela proximidade de seu campus da reitoria e porque Renato lá ia com frequência, tornando-se conhecido dos estudantes que administram o DCE e de funcionários importantes.
Virou figura carimbada aos olhos do próprio reitor de extensão, que depois do reitor, é o mais importante, não na escala hierárquica, porque se fosse assim seria o vice-reitor.
Posava de “ministro da economia e do planejamento”, tendo o poder de viabilizar projetos, ao conceder os recursos necessários, sem esquecer de que é o responsável por liberar o pagamento das passagens para o deslocamento dos representantes estudantis que vivem visitando a reitoria à caça de reivindicações mil para seu campus, uma das tarefas do líder estudantil no ensino público.
A vida de Sebastião de Jesus deu uma guinada de 180 graus. Daquele joão-ninguém que se considerava, passou a ser peça fundamental, pessoa requerida.
Para várias propostas, reivindicações, memorandos, requerimentos, ofícios, era necessário sua assinatura.
Tinha prazer em ser solicitado.
“Homens são valorizados em função do que possam oferecer de útil ao seu semelhante, sem mais nem menos”, essa fala era tão recorrente na boca de líderes estudantis como o Eder, que acabaram mexendo na visão de mundo de Renato.
“É super comum que um sujeito não consiga agradar a todos, e por consequência surja em torno dele uma crosta de pessoas que nutra ódio gratuito, repulsa, desdém ou indiferença forçada”, dizia o Eder, aluno de arquitetura num dos congressos da UNE.
“Mas se o sujeito tem poder, ocupa posição de destaque, os inimigos, movidos pelo interesse, apresentarão comportamento distinto. Terão que camuflar os verdadeiros sentimentos. Temem ser vistos como adversários declarados. Acreditam que seriam mais prejudicados nos seus intentos.”
“Você receberá”, seguia Eder, “muitos sorrisinhos, tapinhas nas costas, palavras de elogios vindos daqueles que enxergam em você mera ponte para atingir certo objetivo. O puxa-saquismo é o lado cara da moeda. O lado coroa é o pegajoso lodo formado por xiitas com discursos sem nexo, que no fim se traduz assim: “si hay govierno, soy contra.”
“Os xiitas, radicais, opositores, buscarão te atrapalhar os projetos, fazer de tudo para que você fracasse em suas intenções de melhorar a vida da comunidade acadêmica.”
“Pior mesmo serão as raposas com cara de anjo, sujeitos que obedecem na cadeia alimentar do poder, atentos a devorar quem está no degrau acima e tomar o lugar. Pouco provável que matem o adversário. Contentam-se em puxar o tapete, deixando-o desacreditado pelas pessoas. As armas desses abutres são a calúnia, a perfídia, a fofoca.”
Ao ouvir esse desabafo de Eder, Renato lembrou consigo que havia, como novato, corrido várias vezes ao banheiro, escondido dos adversários, dos “amigos” e dos indiferentes, para lavar o rosto, abatido pela palidez e pela torrente de lágrimas, a cada violenta punhalada moral que recebia.
Superado o primeiro mandato de coordenador geral do 7 de Setembro, soube se enrijecer frente as dificuldades.
Passou a ser movido por mais uma crença confusa, a de que quando se está no poder ou em busca dele, a moral, a amizade, a honestidade são alegorias, ingredientes importante para dissimular interesses, mas jamais porto seguro no qual se possa ancorar com confiança.
Todo mundo é suspeito, para não dizer inimigo em potencial, e o que conta é manter a calma e que vença o melhor.
Cada mês que se passava Renato adquiria mais prestígio, notoriedade, entre as feras do ME uepiano. Nas eleições de outubro de 1993 foi fácil eleger-se um dos quatro coordenadores regionais.
Sobre suas costas passaria a pesar os interesses de 22 campi, quase 45 mil estudantes, espalhados pelo Estado de São Paulo, sendo que um campus fica na capital paulista.
Raro encontrar homem que põe o pé na rua, luta com todas as forças para obter o que quer da vida, manter-se enfiado somente no trabalho, indiferente ao amor.
Esse é caso de Renato.
Tem, como todo homem determinado, uma paixão a girar os neurônios e esquentar seu corpo.
A condição de meio sonhador, boêmio e de espírito romântico facilita a atração que Sebastião sente por uma mulher bonita.
A representante feminina em sua vida é uma mulher de vinte e cinco anos, último ano do curso de Odontologia da Unesp do campus de São José dos Campos, e que mora na casa dos pais na própria capital do vale.
Sendo a musa dos sonhos e a tormentosa paixão na realidade de Renato, essa moça merece descrição de corpo e mente.
Se não fosse pelo ditado que os opostos se atraem, se podia questionar que relação esquisita é essa.
De um lado, Renato Sebastião de Jesus, jovem, de origem humilde, atolado até o pescoço com o movimento estudantil, mais ativo do que conjunto musical em ascensão, andando para lá e para cá, com um discurso misto de descrença nas instituições sociais e rabugice socialista europeia, sem emprego, vivendo de bico.
De outro, Márcia Andrade Agostinho, estudante de Odontologia, metódica e sistemática, que gosta do bom e do melhor em termos de vestuário e alimentação, jamais se privando das refeições balanceadas, prestando cego respeito ao rigoroso regime que a vaidade obriga.
Olha só o estereótipo. Loira, cobiçadíssima, não rica, mas bem de vida, traços faciais encantadores, descende de boa família, todos com nível superior. E vai encanar com o Renato, pode?
Encontraram-se sabe lá como numa festa. Ficaram juntos pela primeira vez na companhia da alta sociedade joseense, porque até São José tem alta sociedade, ou quem acredita nela se enquadrar.
Dum lado, o advogado, seu aluno de espanhol, convida Sebastião. Doutro, Márcia recebeu o convite da filha da dona da casa.
Márcia o conhecia de vista. Sebastião nem sabia que a menina existia.
Conversa vai, conversa vem, e com a ajuda do imprevisto, acabaram se aproximando, se entenderam no pago que travaram, e resolveram dar uma atençãozinha mais especial um ao outro.
Tinham motivos. Renato meio deslocado, ninguém o conhecia naquele bolo de gente estranha. Márcia achando algo novo no papo do rapaz, vendo na companhia dele tábua de salvação para o tédio reinante nas conversas que havia travado antes.
Que interesse levaria o ‘camarada’ da política estudantil, com inclinação socialista, a tolerar festa em que os fricotes e manias dos ricaços são postos no mais alto tom? Com certeza haveria razões bem fortes, para as quais o convite do advogado seria a pequena ponta do iceberg.
Esse algo a mais vem do projeto que desde fins de 1994 martela a cabeça de Renato: montar uma revista destinada a professores e estudantes. Para tanto requer investimentos de terceiros, visto que ele mesmo é de uma dureza que faria Jó se sentir milionário.
Em festas como esta, esperava, talvez, com sua lábia voltada para este fim, conseguir chamar atenção de pessoas de destaque, endinheiradas e sem medo de investir, para que a revista saísse da condição de sonho. Expectativa compartilhada com o advogado Roberto Medeiros.
A ideia havia agradado ao advogado, que se propôs ao papel de promotor de vendas, apontando interessados. Anos dedicados à advocacia renderam preciosos contatos. Conhecia bem as principais famílias, do noroeste paulista e do Vale do Paraíba para saber que se eles achassem lucrativo o empreendimento, empregariam dinheiro. Anos antes de sair de São Paulo e vir fixar residência em São José, em meados da década de oitenta, mantinha escritório na capital do Vale.
Para si mesmo via nenhum interesse no negócio, estava com o burro na sombra, às portas dos sessenta anos.
Pensava na filha, Carolina Luzio Medeiros, amiga e colaboradora do professor de espanhol e que cursava publicidade na UEP. E na atual amante, Mônica Carlioli, estudante de jornalismo, em Bauru, que se formou em 1994 e que, devido ao seu gênio nada submisso, não tolerava, segundo ela, a caipirada das redações que lá existem, sem, no entanto, ter coragem de trocar o interior e arriscar a sorte nas metrópoles.
Se Renato tivesse êxito na revista, e preso pela parceria, a filha e Mônica teriam um sólido e vantajoso primeiro emprego. Todos que mantivessem laço profissional com Sebastião lucrariam se a revista vingasse, conjeturava Medeiros.
Dias depois da festa, Renato convidou Márcia, de início para o cinema, mas acabaram indo para uma das mesas do Bar Xereta.
Após aquele vai-não-vai que ocorre em primeiro encontro envolvendo dois tímidos, rolou o beijo que marcaria o começo do namoro.
Márcia mora sozinha na casa do pai. O sr. Agostinho vive noutra casa em Campos do Jordão com a terceira mulher e uma filha de cinco anos.
Fácil adivinhar que Renato pousou por lá na segunda semana de namoro. Para a menina nada de novidade. Havia namorado um estudante de engenharia do ITA, em Jacareí, dois anos atrás. O relacionamento durou três anos.
Como todo início de vida de casal “normal”, em que cada um se liga ao outro por livre e espontânea vontade, tudo é alegria, encantos recíprocos.
Razão pela qual nem ele nem a Agostinho se atentaram para suas naturezas tão distantes, personalidades quase arqui-inimigas. A dele, apesar de ambiciosa e revolucionária, pouco prático e sem noção de realidade. A outra, violenta, mimada nas relações interpessoais, porém, resignada a se contentar com o que o mundo oferece em termos profissionais.
Renato impacienta-se com o destino, quer alcançar posição melhor daquela que o berço concedeu; enquanto Márcia percorre o caminho traçado pelos pais. Passado o momento de novidade de viver debaixo do mesmo teto, as tensões surgirão e as brigas serão constantes na relação a dois.
“Uma pessoa deve procurar seu igual para casar, que tenha os mesmos interesses, que mostre determinação para crescer juntos, se não é encrenca na certa”, este pensamento é partilhado pelas mães de ambos, cada qual ao seu jeito.
Para a mãe de Renato, ligar-se a uma moça como Márcia, seria mal visto pela família diante das condições financeiras presentes dele.
O modo inquieto do universitário que muito fala, mas tem pouca disposição de garantir as despesas de uma casa, é mais que lenha para a mãe de Márcia abominar a atitude da filha de levar o rapaz para dentro de casa.
As duas mães pressentiam que a tormenta seria feroz na vida deles. E se não houvesse mudança na maneira de como cada um encarava a relação, o fracasso seria certeiro.
Passados quatro meses de namoro, da febril paixão, do romantismo fora de série, difícil de ser encontrado na lógica do descartável, o pai, médico veterinário, mais para contribuir com a felicidade da filha, menos por vontade própria, deu autorização a Renato para morar com Márcia na casa.
Não foi bem uma autorização do tipo: “eu te concedo...”, mas um empurrar com a barriga, fechando os olhos para o capricho da filha, no sentido de não a repreender.
Como aproveitou sua juventude, no fundo, o sogro esperava que o jovem o surpreendesse, tornando-se homem de família.
Sabendo da necessidade de uma pessoa centrada para estar do lado da filha, que passou um sério aperto na relação anterior, tinha esperança que o jornalista provasse ser merecedor de sua confiança, superando suas expectativas.
Podia ser o suporte que espera para sua filha, para levantar-lhe a autoestima e valorizar-se como mulher e esposa.
O rapaz tinha boa formação acadêmica, havia cursado universidade de prestígio. Era educado e prestimoso. Tinha tudo para levar a sério a meta de trilhar uma carreira e construir uma família se realmente visse em Márcia a pessoa por quem valesse a pena se dedicar.
“Quando se passa a conviver entre quatro paredes com uma pessoa a coisa muda”, certo dia o sogro tentou puxar conversa com Renato, quando percebeu que o clima entre filha e genro estava meio confuso.
Bastaram alguns meses para que os primeiros encantos se murchassem, e cada um, na sua própria razão, se espantasse com os comportamentos do parceiro e dissesse consigo: “O que é que eu estou fazendo do lado dessa pessoa? Aonde eu fui amarrar meu bode?”
Hoje, depois de um ano vivendo juntos, a instabilidade reina entre eles, empurrando-os para o fim inevitável. E esperada a separação de corpos, visto que a de sonhos e afinidades foi para o brejo há muito tempo.
Apelando para o lado prático da condução do relacionamento, quem pisou na bola feio foi Renato.
Os sonhos vendaram os olhos.
A miragem insensata duma subida no poder aquisitivo de uma hora para outra, de ver os negócios darem lucros calcados em hipóteses infundadas, impediu que Renato desse ouvido à realidade que gritava para que ele fosse devagar com o andor, que calculasse e evitasse dar o salto maior que a perna.
Minou a credibilidade que Márcia nele depositara, ceifando o encanto.
O sonho de Renato somava dívidas e mais dívidas. Credores importunavam a toda hora. Batiam à sua porta. Rosnavam em telefonemas constantes e ameaçadores.
Ele contornava com mentiras e mais mentiras, não no sentido de enganá-la, mas de não ver a moça nervosa, descrente. Tolices de homem que está encurralado. A confiança dela mirrou.
Quando a mulher perde a confiança no macho é sinal vermelho.
Vá lá tentar frear os sonhos dos obsessivamente ambiciosos, das pessoas que acreditam ter uma missão sublime, que devem alcançar a qualquer custo certo posto, o qual, às vezes está muito acima das possibilidades reais da média dos seres humanos.
Indivíduos assim são mulas de teimosia. Que gloria é quando um desses, depois de berro e esperneio, compreende que no caminho que traçou há obstáculos de montão, e que se não forem levados em consideração, serão intransponíveis.
Essas pessoas se acreditam divinas.
Renato resistia a privações mais básicas. Se não fosse por Márcia e seu trabalho, Renato, depois de colado grau na UEP, sequer teria dinheiro para andar de ônibus ou condições de fazer as três refeições diárias.
Havia perdido o privilégio de lecionar Espanhol lá por não ser mais aluno e as revistas diminuíram a procura por seus escritos, visto que não tinha mais o status de estudante, mas de jornalista desempregado.
Por mais que a Márcia, fraca e resignada, mas coerente com o moderado princípio de classe média, tentasse abrir os olhos dele para que notasse os buracos, compridos e profundos, à sua frente, ele acreditava poder saltar todos e atingir o outro lado.
Como artistas e atletas, Renato se sentia arrastado pelo desejo de alcançar o pódio para ser aplaudido pela pessoa amada, ter o respeito dos demais e posição social consolidada.
O seu ponto fraco é que, não dando ouvidos à realidade, deixou-se conduzir pelos caprichos e mimos do amor-próprio.
Agostinho, se nunca foi rica e esbanjadora, jamais teve que passar privações nem estava disposta.
Ao ver a resignação do rapaz com a falta de dinheiro para contas de casa, e, o que era pior, ter pagado mais de uma vez a credores que batiam a sua porta, concluiu que ele havia, de certa maneira, se acomodado a comer o que ela punha no prato, através da tosca mesada que recebia do pai.
Achou que seria melhor se separar, não sem antes sofrer, chorar, se descabelar. Dele gostava de modo franco.
Forçada exclusivamente pelas circunstâncias, ela soube pôr um ponto final no que dava pistas de se tornar um tormento.
De um lado, ela cobrando que ele saísse daquela dependência, que abdicasse dos sonhos. Na cabeça dela, adaptada à estabilidade social, é impossível entender o que leva o visionário a ver uma ilha para aportar, onde a maioria só enxerga mar.
Da parte dele, acreditava que em breve um de seus planos daria retorno para pagar cada centavo que devia a ela e que Márcia dele teria orgulho quando o visse vitorioso.
O retorno não vinha. A dificuldade crescia. Com ela o desânimo da moça e o desespero do rapaz.
Essa instabilidade no relacionamento, juntada com a falta de perspectivas práticas em alcançar recursos financeiros são o que maculam o sorriso de Sebastião no momento.
Sorriso que costumava manter-se debochado e refrescante, mas que ultimamente exala um mormaço que ofusca sua suavidade.
Alguém que não o conheça poderia classificá-lo de avarento, ao vê-lo manipular, de modo atento, as cédulas de reais que os alunos deram para a matrícula no curso de Espanhol.
Era tentativa de valorizar a atitude focada em ganhar dinheiro para bancar as despesas que a vida exige. Talvez aprendizado da convivência com Márcia.