PEGOU A GARRAFA de vinho branco e pôs o copo pela metade. Os parentes iam chegando. Estranhos no recinto só da parte da família do namorado da filha, compreendendo pai, mãe e o genro. O anfitrião os cumprimentou, indicando em seguida as poltronas e o sofá na sala de estar. O sofá estava com três nádegas, cujos donos levantaram-se para saudar quem chegava e logo retornaram ao conforto do assento.
Diante dos assentos, há uma mesinha de madeira rara. Sobre ela o vaso de flores começa perder espaço diante dos copos de cerveja e travessas dos antepastos, sem contar com chaves de carros e carteiras. Como esposo anfitrião, ele ajudou a mulher a guarnecer nova bandeja com quitutes e trazer à sala para substituir a que se esvaziara. As latinhas de cerveja eram requisitadas, sim, mas moderadamente. Havia os abstêmios, para quem os refrigerantes e águas geladas surtiam prazer idêntico ao álcool.
Quem adentrasse na cozinha veria a grande travessa de alumínio, guarnecida com o pernil bem-temperado, saboroso, requintado. Iguaria tradicional à mesa desta família na última noite do ano. A carne de panela com mandioquinha, a sogra traria; junto com a maionese da cunhada; e mais a rabugice do sogro septuagenário. Nesse ano, seriam duas famílias convidadas a passar o réveillon.
Às 22 horas, boa parte das pessoas ia para a oração. No sofá, restavam os três chefes de famílias, céticos, ou acomodados. Ficaram no sofá proseando. A TV estava ligada, e o som baixinho a fim de não perturbar a oração comunitária que se dava num dos cômodos da casa. Estando a TV silenciada, os homens proseavam sobre futilidades, mais por cortesia que por interesse no assunto. O anfitrião vez por outra se erguia. Circulava na cozinha, no quintal ou reabastecia o copo de vinho branco. Bebericava sem a necessidade de se pôr alcoolizado.
Minutos após o fim da oração, à mesa bem-arranjada, ouvia-se o tilintar dos talheres, as bocas movimentando, os dentes triturando. Tudo mostra que a ceia agradava. A voracidade vinha dos que se seguraram por muito tempo sem atacar uma coxinha de frango. A TV exibia o programa musical que precede a virada e trazia uma imagem de pessoas gritando, pulando, se beijando, quase em transe diante dos músicos que se apresentavam no palco. Imagem tão diferente da que a sala de jantar exibia com as três famílias à mesa degustando o que lhe chegavam à boca.
O anfitrião, na posição que estava, podia dar-se ao luxo de fixar o olhar em qualquer dos convivas ou no que a TV mostrava. O espaço no canto da parede era o preferido. E antes que as pessoas se alojassem, ele o rodeava. Bastava a primeira se sentar, para ele tomar o assento.
A mousse de chocolate, a de morango, a de caju e o manjar de coco fechava com chave de ouro a magnífica ceia. As uvas verdes dão o requinte digestivo.
De volta à frente da TV, alojados no sofá e nas cadeiras, boa parte da família esperava a virada. Os assuntos voltavam a fluir. Nem dá para repetir. A gama é muito ampla. De novidades sobre vizinhos, filhos na profissão, netos na faculdade, e até as nocivas implicações do recente pacote econômico. Violência é assunto nos últimos tempos bem em voga nas rodas familiares, ali não faltariam casos e casos.
A alegria que as pessoas da TV apresentavam o perturbava. Caras animadas, suadas, agitadas, uma empolgação. Contraste nítido com as pessoas desse lado de cá da TV. Paradas, ou conversando, mas nunca sem deixar a confortável poltrona. O programa era gravado, visto que desde ontem a TV volta e meia o anunciava. Provavelmente boa parte daquela multidão e dos próprios artistas estava em casa em situações semelhantes.
Do que se queixava? Da beleza, animação e zoeira que a juventude exibe? Ou da sua rotina de fim de ano que julgava limitada? Do fato de que assim que estourasse o champanha, cessaria a festa familiar e cada qual para a casa, para a cama? Nem ele saberia responder.