O homem é bicho inconformado com a regra do jogo que a vida impõe. Já vimos formiga alcançar a lua? Comando de um formigueiro, apoiando-se numa suposta legitimidade, ditar ordens no formigueiro vizinho? Cavalo, boi ou vaca se meter à besta em bulir com a camada de ozônio?
O bicho humano mexe e remexe com quase tudo. Gordo, sonha emagrecer. Magro, espera tomar corpo. Branco, se irrita, e quer amorenar. Negro, pinta-se de branco. Calvo, não vê a hora do implante... Os genótipos perdem para as tintas artificiais que colorem pele e cabelo nos dias atuais.
Assim como nas demais espécies da natureza, na humanidade há os supertranquilos contrastando com os ativos em demasia. Extremos humanos. Quanto aos primeiros, na ótica dum observador pouco atento aos pequenos detalhes, juraria tratar-se de pessoas conformadas.
Conformado? O ser humano? Nada mais errado. A menos que esteja morta, não há pessoa totalmente conformada.
Destino, Deus, espíritos do além e demais forças ocultas do universo largaram mão de tentar compreender esta espécie esquisita que rasteja sobre a Terra. Viram que é trabalho perdido.
Passear na filosofia sobre o que é o homem nunca surte o mesmo efeito que apresentar o simples dia a dia duma pessoa.
Já que se trata de inconformados, veremos um.
Robson de Braga Araújo quer ser valorizado como escritor. Até aí, nada anormal. Cada um tem seus sonhos.
Aqui o sonhador beira o poço da obsessão.
Robson leva sua meta até o limite do delírio. Ainda que seja um delírio letrado, acadêmico e crítico. O delírio é alcançar a fama a qualquer custo. O ruim é que o reconhecimento foge dele como alguns parlamentares se esquivam da CPI (seja qual CPI for, desde que ponha em dúvida seus atos e patrimônio).
Manhã de quarta-feira, mês de julho de 1996. A cidade de Taubaté, interior do Estado de São Paulo, despertava da mesma maneira que o fizera no dia anterior, a despeito do que possam falar os amantes da Física.
Estamos na periferia, porque Taubaté também tem sua periferia. A casa é aquela desprezada pelas pessoas esnobes e sonhada por milhares de miseráveis que encaram um banco frio duma praça, um canto duma calçada encostado nalgum estabelecimento comercial; únicos pontos que costumam estar disponíveis numa metrópole, salvo se o indigente conseguir uma vaga nessa ou naquela favela.
Robson olha para o neurótico despertador, que berra sem cessar. Marca seis e meia. Reclamar do quê? Ora, ele que preparou o encrenca para tocar nesse horário. Tem mais é que agradecer. O que se quebrou na semana passada, ora, era um tal de perder hora.
_ Vamos, homem, vamos... A hora é esta.
Não é o despertador que dirige estas palavras. Sua consciência, em meio ao torpor, é que grita.
Bem que quis dar ouvidos ao chamado. O cansaço é que não permitiu. Dorme por mais uma hora.
De repente, apóia-se na cama. Espreguiça. Queria que o mundo acabasse, uma bomba caísse, ou coisa pior. Tudo, menos deixar as cobertas.
Toca com os pés o chão gelado. Procura os chinelos. Malditos. Nunca os acha onde os deixa na noite anterior. Só que não saberia dizer precisamente em que lugar os deixou. Apanha-os, um pé no sul, outro no norte. Nem que quisesse conseguiria atender a antiga solicitação da mãe, dona Eunestina.
_ Evite pisar no chão gelado. Faz um mal danado para a saúde.
Dona Eunestina cumpria seu papel de mãe zelosa. Temia o resfriado crônico do filho. Embora que esporádico, desde tenra idade Robson não tinha sossego. A luta já dura mais de três décadas.
Num passe de mágica, vestira a surrada calça jeans, a camisa sem passar. A refeição matinal vinha com o chocolate em pó misturado ao leite e uma banda de pão amanhecido, passada na manteiga. Café dava muito trabalho, até os solúveis. Bebia a rodo durante o expediente, então para que encanar?
Os dentes ficariam sem escovar. Lá no cartório emplacaria a higiene da boca. Em seu armário, luziam sabonetes, pasta e escova de dente.
O sol duma manhã de inverno, vez por outra, irrita os olhos dos que saboreiam as recomendadas oito horas de sono. Imagina que estrago faz com os que conservam o mau hábito de imitar morcegos e corujas, trocando o dia pela noite. Robson, dedicado amante das letras, encontra oportunidade para rabiscar seus poemas no silêncio e na hora vaga da madrugada.
Chegou ao cartório atrasado. O patrão, ressabiado, nem faz cara feia. Se adiantasse! O único consolo era descontar no fim do mês. E não estava disposto a abrir mão do recurso.
Quem gosta de perder? Nem o atrasado. Um dia a indignação explodiu. O atrasado, de holerite em punho, tomou coragem e foi reclamar.
_ Mas seu Antônio, tudo isso de desconto?
_ Que fazer? São os minutos atrasados.
_ Tudo isso? _ o empregado, com expressão sofrida no chupado rosto, monologa a pergunta, sem esperar uma resposta favorável. Sabia que estava errado.
_ Somei vinte minutos num dia, quinze noutro... Cheguei a esse valor _ disse o patrão com os olhos fixos no papel, no qual listava os mais de vinte dias que sofreram algum tipo de desconto.
_ O senhor sabe que moro longe...
O advogado Antônio Queiroz, proprietário do cartório, sorriu meio sem graça. Com mais anos de advocacia do que Antônio Magalhães de política, ele sabia reconhecer um bom caráter na pele de Robson. Funcionário aplicado. Não fazia corpo mole no serviço. Nem era de faltar.
Procurou contornar a atitude arbitrária.
_ Sei de tudo isso... e muito mais... O que não posso é abrir exceção para alguém. Se não cobro seus atrasos, é bem capaz que daqui a algum dia todos passem a chegar depois das dez...
Exagerava. Mas mesmo exagerando todo empregador julga ter razão. E quem é que vai destituí-lo dela?
Robson bate em retirada, volta para seu posto. Reconhecia a perda de tempo.
Após tirar a capa protetora da máquina profissional, correu a Henrique para receber a papelada acumulada. Datilografaria direto e reto, sem parar, até a hora do almoço. Se bem que ir ao banheiro, fumar um Hollywood, molhar a goela com um cafezinho, café que o Guilherme, vulgo Zé Beiçudo, trazia do bar & restaurante, eram de lei, ações constituintes do expediente.
O dia no cartório era de cão. E dos raivosos. O cristão tradicional ali enxergaria a imagem do inferno dantesco. Nem faltando figuras carimbadas como a do diabo. Este na pela do Dr. Antônio Queiroz.
Que mais pensar face àquela fisionomia extravagante? Bigode espesso, meio cinza pela idade, meio amarelo pelo hábito do charuto; calva pronunciada no topo da cabeça; raspa de cabelos brancos acima das orelhas; as bochechas que pareciam ferver, dado o vermelho constante na hora de maior movimento no cartório.
O diabo não reina solitário. A clientela doutro lado do balcão seria os anjos decaídos. Isto quando não ocorria de um ou outro mais atirado adentrar a área que deveria ser exclusiva aos funcionários, no intuito de tornar suas exclamações mais veementes, aterrorizadoras.
A lógica diária é a gritaria. Caras irritadas diante da espera. Taxas contestadas antes de quitadas. O doutor, algo sensível com as pessoas, passa por bruto quando o assunto é ganhar dinheiro ou evitar perdas. O número de funcionários, ah, insuficiente para a clientela. A sede de lucro faz com que feche os olhos à realidade.
Coisas de Brasiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiil.
Rotina dos documentos importantes. Firmas que se abrem. Firmas que se fecham. Pessoa física ou jurídica que protesta ou se vê protestada.
O Brasileiro amante do samba encararia o tumulto diferente do cristão tradicional. Veria nele o carnaval jurídico. Os mais variados blocos desfilando pela grande apoteose chamada cartório. Blocos dos golpistas, dos lesados, dos empreendedores, dos associativos...
Datilografar, manusear documentos ultra-ultraconfidenciais. Reconhecer assinaturas, rubricas. Autenticar cópias de RG. CIC. Tirar certidão de nascimento, de casamento, de óbito. Receber o tal CGC. Cópia do estatuto publicado no Diário Oficial, colorido pela lista dos diretores, associados. Registrar ATA de Assembleia ordinária, extraordinária, é sempre bom para evitar falatório.
Os ventiladores de teto que esquentam mais do que refrescam. O ar-condicionado que pifou uma semana depois de instalado, e até agora na assistência técnica. Ainda bem que o inverno ajuda um pouco.
Os calos nos dedos, coisa de praxe. Canetas babadas e mordidas nas tampas. Muitos preferem chupá-las que mascar ponta de cigarro.
Cinco e meia. Robson esgotado. Quem estaria ainda com alguma animação após toda essa tempestade? Ninguém, a não ser um malandro. O malandro que se poupa do esforço bruto, que consegue dirigir o ambiente de modo a não se perder no estresse doentio. Marcos é o malandro. Único que se mostra disposto a passar no Shopping Center, esperar a namorada que trabalha numa butique e encarar duas horas diante duma grande tela de cinema, com saco de pipoca na mão.
Os demais se arrastam para suas casas. Uma boa parte, depois de um banho e a refeição quentinha que aterrissa na mesa de jantar, recuperam o ânimo. Despertam. Dão a devida atenção à TV, ao rádio, durante o resto da noite, aguardando a hora de dormir.
O solitário não goza da mesma sorte. Vai lavar a louça. Pôr algumas coisas em ordem. Desde que a mulher pediu as contas, indo se enroscar nos braços de outro homem, na opinião dela mais pé-no-chão, a casa beira uma república de hippies. Robson só capricha na arrumação quando o filho e a menina vêm visitá-lo.
O pai deposita a pensão das crianças, a quantia que a lei exige, na conta da esposa. Não é pão-duro. Quando necessário, solta mais grana. A esposa e o atual marido, ambos bem empregados, não fariam questão. Mas já que o pai quer, melhor.
Aninha cansou da convivência. Robson teve uma vida familiar boa. Perdeu por intransigência. Retomou um hábito que nutriu na adolescência: o gosto pela poesia. Sem medir as consequências, quis se dedicar para valer.
Agarrou-se aos livros com sofreguidão nos fins de semana. Encolerizou a esposa. Sem passeio, sequer assistir ao Faustão, nem futebol, nem brigar, nem nada. Leitura, só. Insuficientes os fins de semana, contaminou as noites, as madrugadas. Ela, solitária. Ele, lendo e escrevendo. Foi a gota d’água. Não nascera para isso. Assim que ele completou um segundo volume de poesias, Aninha pulou fora.
Robson enviou os volumes para as editoras. Duas recusaram logo. Outra, quase seis meses para dar a resposta negativa. As editoras são gentis. Quando recusam o material, alegam: nossa programação de lançamento já está preenchida pelos próximos meses. Mesmo sem interesse na publicação de seu original, agradecemos a preferência. A ausência de palavras explícitas que desqualificam os poemas incentiva o ego do escritor a persistir na labuta, nutrindo a esperança de que um dia a sorte apareça.
“A arte nasce destituída do lucro. Se um dia enriquecer, legal”, é a opinião de Robson. Conservando esta convicção nosso Dom Quixote das letras desvalorizadas dedica-se de corpo e alma. Um martírio que, cá entre nós, fornece algum prazer ao pobre infeliz.
Que importa mulher, tranquilidade? No cérebro do inconformado há uma substância esquisita. Néctar da confiança, poder da determinação ou vírus da ilusão? Pouco interessa. O que vale é que disputa lugar com o sangue, irrigando sonhos e atitudes.